Suzana Herculano-Houzel toma posse na Cátedra Otavio Frias Filho
“É preciso reconhecer a diversidade, entender como ela surge e celebrá-la, não apenas tolerá-la”. Isso é fundamental no momento que o mundo vive, segundo a bióloga e neurocientista Suzana Herculano-Houzel, da Universidade de Vanderbilt, EUA.
A cientista tomou posse no dia 9 de maio como nova titular da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade, parceria entre o IEA e o jornal Folha de S.Paulo, do qual ela é colunista. Suzana sucedeu ao sociólogo Muniz Sodré, professor emérito da UFRJ, primeiro titular da cátedra.
Na posse, Suzana proferiu a conferência "Desde que Funcione: Por uma Visão mais Otimista da Vida onde a Diversidade É a Norma", na qual apresentou ideias de um novo livro que está escrevendo, dedicado à importância da diversidade na evolução.
O convite para assumir a cátedra lhe chegou num momento perfeito, disse: “Meu trabalho de pesquisa se encontra num ponto de diversificação em várias áreas diferentes, todas elas gerando conhecimento que começam a tomar forma num contexto maior, que é justamente o da diversidade”.
Por ser bióloga de formação, o interesse que tinha na diversidade do cérebro se expandiu para a diversidade da vida de maneira geral, “inclusive para entender onde a diversidade do cérebro se encaixa nisso”, afirmou. Seu interesse sempre foi pautado por três perguntas principais: 1) qual a extensão da diversidade? 2) há limites, regras para ela? 3) quais são suas consequências?
Cerimônia ressalta relevância da diversidadeNa abertura da cerimônia de posse de Suzana Herculano-Houzel, a reitora em exercício Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), afirmou que, ao mesmo tempo que abriga a reflexão sobre comunicação, democracia e diversidade, a Cátedra Otavio Frias Filho dedica-se a temas fundamentais do mundo contemporâneo e serve para a USP refletir sobre ela própria e o jornal Folha de S.Paulo refletir sobre sua prática. “Trata-se de uma dupla reflexividade, algo muito importante para a pesquisa e a construção do conhecimento”, segundo ela, para quem a ênfase atual da pesquisa concentra-se na empatia. "Mas a cátedra está tanto nesse registro quanto na reflexividade - a partir do estranhamento -, algo que está meio démodé hoje". A contribuição de Suzana deslocou a maneira de formular o problema em seu campo, afirmou. "Esse deslocamento cria possibilidades, com avanços que têm muito a ver com a questão de gênero. Quando ela contesta o pressuposto da sobrevivência dos mais aptos está tendo um olhar descentralizado, o olhar da diversidade." Para Maria Arminda, a divulgação científica e o jornalismo de qualidade afastam "o terror que estamos vivendo, onde há impactos terríveis das fake news e da pós-verdade, onde qualquer informação vale e as pessoas não se responsabilizam sobre suas opiniões". "Incrível que tenhamos chegado a esse ponto, um mundo que contesta a boa ciência e a construção de uma cultura densa, que procuramos construir na Universidade e no jornalismo de qualidade. Não teremos nenhum marco civilizacional se não conseguirmos enfrentar essa questão", afirmou. Para ela, uma cátedra como a Otavio Frias Filho sob a titularidade de Suzana tem um papel central para a Universidade e o Brasil no momento, pois "é um exemplo da autoconstrução reflexiva, que é o que pode nos levar a patamares superiores sociais, políticos, econômicos e de avanços da cultura". O diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, destacou que o ciclo proposto por Suzana “busca compreender as relações entre a ciência, a comunicação e a diversidade enquanto elementos contemporâneos fundamentais para a existência da democracia, tema igualmente relevante do ponto de vista acadêmico”. Ressaltou ainda o caráter interdisciplinar da neurocientista, “algo que está também no DNA do IEA e presente em boa parte da USP”. O coordenador acadêmico da cátedra, André Chaves de Melo Silva, disse que Suzana traz para a cátedra o estudo da diversidade nas ciências em processos de produção e como isso impacto o cotidiano de todos. Ele anunciou a seleção de 64 pesquisadores para trabalhar no tema proposto pela catedrática. Informou ainda que está em fase de produção a coletânea de artigos dos participantes do projeto coordenado pelo primeiro titular da cátedra, o sociólogo Muniz Sodré Sodré disse ter sido "eletrizante" ter inaugurado a cátedra: "Desenvolvemos um trabalho difícil, à distância, com um grande número de pesquisadores, sobre uma questão essencial do pensamento brasileiro desde o final do século 19: o que é ser brasileiro". O evento foi encerrado pela pró-reitora adjunta de Inclusão e Pertencimento, Miriam Debieux Rosa. Ela destacou que a função da Pró-Reitoria é pautada pelo acolhimento da diversidade de culturas e formas de vida, para que novos problemas e novas epistemologias tenham lugar, adotando "os marcadores sociais como marcadores de diferença, de diversidade, para compor uma ciência que traga criatividade e outras formas de pensar". Para ela, Suzana apresenta uma versão bastante original da diversidade, que "se contrapõe às formas de silenciar o diverso, inviabilizar o diferente e tentar eliminar aquilo que é um enigma, que nos provoca e nos põe a trabalhar". Também participaram da cerimônia o pró-reitor de Pesquisa e Inovação, Paulo Nussenzveig, a vice-diretora do IEA, Roseli de Deus Lopes, o diretor de redação da Folha de S.Paulo, Sérgio Dávila, e o secretário de Redação do jornal e coordenador-adjunto da cátedra Vinicius Mota. |
Sem finalidade
Ela disse fugir do “maldito por que”, pois quando ele é aplicado a questões científicas, como no caso da diversidade da vida, acaba se tornando “para que”, “o que confunde o meio de campo, porque acabamos procurando uma finalidade”.
“Na biologia, a gente já aprendeu que não faz sentido falarmos em termos de finalidade, mas essa noção é recente.”
A razão da diversidade já era reconhecida na Grécia antiga, disse. “Aristóteles escreveu sobre isso. Os gregos começaram dos minerais, de sistemas mais simples até chegaram ao ser humano.” A progressão continuou ao longo da história, “chegando aos anjos e depois a Deus, na concepção cristã do mundo”. Suzana afirmou que cérebros em geral, não só humanos, categorizam, tentam classificar e identificar objetos.
Ela lembrou que Lineu, em seu “Systema Naturae”, de 1748, primeira tentativa documentada de descrever a diversidade da natureza, cita os fósseis como integrantes do Reino Mineral. A história do entendimento do que eram esses animais que existiram é riquíssima, segundo Suzana. “Aceitar que formas diferentes haviam existido era uma afronta à perfeição divina. Mas já era sabido que seres deixavam de existir. Acabamos com os dodôs das Ilhas Maurício no século 17. Hoje se sabe que a extinção é a norma.”
Ela comentou que a imagem inicial da Árvore da Vida de Darwin ou a mais elaborada produzida por Erns Haeckel, ainda no século 19, mostram uma diversidade sempre crescente, “o que é um problema”.
“Uma imagem que expressa toda a riqueza da vida é outra, com diversificação seguida de dizimação, a qual é seguida por novas diversificações”, disse. Ela descreve os fósseis presentes no Burgess Shale [xistos de Burgess, na Colúmbia Britânica, Canadá]”, um dos maiores depósitos de fósseis do mundo. [V. as imagens citadas abaixo.]
No entanto, agora há uma imagem que expressa melhor a difusão da vida, formada por arcos temporais concêntricos, com as espécies atuais na borda externa, exibida por Suzana em sua apresentação. O diagrama foi produzido pelo Projeto Evogeneao e teve como inspiração o livro "O Conto do Ancestral", do zoólogo britânico Richard Dawkins [v. a imagem abaixo].
Darwin
Para Suzana, o grande problema com que Darwin se deparou foi como explicar a existência da diversidade. “’A Origem das Espécies’ não é um estudo da evolução. Ele nem sequer usa essa palavra. É um estudo sobre a diversidade, sobre como é possível que ela surja.”
Ele partiu do pressuposto de que a vida é uma luta constante pela sobrevivência, pois não existiriam recursos suficientes, ideia decorrente das observações de Malthus sobre a discrepância matemática entre a taxa de crescimento da população e a da produção agrícola, explicou.
De acordo com Suzana, a partir da criação de raças de cães e pombos, comum na época, por meio da transformação em poucas gerações de sua aparência por meio da escolha dos filhotes que deveriam sobreviver, Darwin parte para ideia de que, dado um contexto de competição por recursos, deve haver seleção natural.
“Mantendo a tradição crista – e ele era religioso - da escada natural, da ascensão até a forma divina, ele pressupõe que as espécies mudam pela adaptação a novas condições através de seleção natural", disse.
“Até aí, isso é uma constatação. Mas ele faz questão de ir além e colocar com todas as letras que a adaptação leva ao aperfeiçoamento. Acho que aqui a história começou a degringolar. E daí os problemas que temos hoje da visão darwinista da diversidade e suas consequências.”
Aptidão
O filósofo Herbert Spencer condensou esse processo na frase “sobrevivência do mais apto”, que “não é uma frase de Darwin, mas ele expôs essa ideia, de que a seleção natural leva ao aperfeiçoamento e, claro, a espécie humana deve ser o ápice dessa diversidade”, afirmou.
Segundo Suzana, Darwin explica que a diversidade como consequência de seleção natural é vantajosa e por sê-lo leva a mais seleção natural e, por consequência, à evolução. “Ele estava tão imbuído dessas ideias que não notou que fazia um raciocínio circular, por não ter como explicar como a diversidade surge de fato.”
Disso surgiram “as quatro palavras mais tóxicas proferidas pela Humanidade: ‘sobrevivência do mais apto’”. Em nome disso, logo depois da morte de Darwin, “veio a eugenia, da qual o Darwin não é isento de culpa, pois tinha perfeita ciência da casa de marimbondo que estava criando”.
A implicação que vem depois é que, “se o processo é adaptativo, cabe a nós cuidar para que só os mais aptos tenham recursos e a possibilidade de transmitir suas ideias e capacidades adiante. Com isso, a sobrevivência do mais apto se transforma numa justificativa de intolerância da diversidade. Daí, é um pulinho de nada para o supremacismo”.
Suzana propõe outra visão para o entendimento da diversidade e suas consequências: “A expressão em inglês é ‘whatever works’. A melhor tradução que encontrei até agora é ‘desde que funcione’”.
“Graças à pesquisa em microbiologia, hoje entendemos que a vida simplesmente varia. A evolução é apenas mudança ao longo do tempo, não é progressiva. A vida muda porque a diversidade é a norma. Não muda para melhor nem para pior", afirmou.
Para ela, o darwinismo considera que a vida tem necessidades, problemas para resolver e “isso não é verdade de maneira alguma. Ninguém tem problemas. A vida simplesmente é, desde que ela funcione”.
Auto-organização
Suzana acredita que existe uma alternativa muito mais simples e parcimoniosa a essa ideia darwinista de que tudo serve a uma função e existe porque um dia teve sua razão de ser, foi vantajoso de alguma forma: “Darwin não sabia que a vida é complexidade auto-organizada. A auto-organização é uma propriedade que opera no Universo, não é nem mesmo uma propriedade exclusiva da vida, um tipo muito particular de auto-organização”.
O problema em sua opinião é que Darwin não sabia que a consequência de juntar diversidade com auto-organização é produzir mais diversidade em novos níveis.
“Vida é a capacidade de um sistema de reduzir sua entropia, ou seja, gerar organização, às custas de energia, o que pode ser até para se manter vivo mais um dia ou gerar mais organização, crescer e formar um novo sistema", disse.
Se a organização de um sistema vivo aumenta graças à energia é porque a entropia do sistema em que está inserido aumenta, explicou. “Isso é extremamente importante ter em mente por causa das consequências ao meio ambiente. A consequência de estar vivo é a gente desorganizar o nosso ambiente. Estar vivo só acontece às custas de absorção de energia, e alguém paga por isso.”
Suzana citou a definição de vida presente em verbete da "Stanford Encyclopedia of Philosophy": “Sistemas vivos são sistemas abertos mantidos em estabilidade longe do ponto de equilíbrio graças a fluxos de matéria-energia nos quais ciclos autocatalíticos transferem a energia que sustenta a auto-organização”. Essa transferência de energia “é o que a chamamos de metabolismo”, disse.“Um sistema não vivo, com uma membrana permeável, é um sistema que está em equilíbrio. Se gero um desiquilíbrio, com o tempo as partículas se realocam e geram um outro equilíbrio. Ao contrário, um sistema vivo tem uma coisa a mais que é a capacidade de se manter em desequilíbrio às custas de energia.”, explicou.
Segundo ela, a célula é um sistema em desiquilíbrio, uma unidade de trabalho, de uso de energia, de geração de ordem às custas de energia. Isso só é possível porque a célula é capaz de transferir energia de oxigênio e carboidratos para a moeda de troca dentro da célula, ADP (adenosina difosfato). Se isso é interrompido, há perda de produção de ADP e a consequência é a célula ficar em equilíbrio com seu entorno e morrer, de acordo com a explicação de Suzana.
Oportunidades emergentes
Quando se reconhece a diversidade como uma propriedade intrínseca da biologia associada à auto-organização, descobre-se que “existe a possibilidade de contar a origem da diversidade através de oportunidades emergentes que surgem porque a variação é a norma biológica, que podem trazer custos e, ocasionalmente, propiciar novas oportunidades”.
Essas variações se perpetuam quando elas são viáveis o suficiente para determinada forma de vida “chegar a um ponto de tanta complexidade que ela já tem como gerar uma forma menor, uma cópia de si mesma”, afirmou.
Suzana disse que uma preocupação que pretende discutir na cátedra são “as implicações dessa necessidade biológica quando analisada em função da população. “A consequência é que as formas variam. E quando observamos todas as que ocorrem numa população, descobre-se uma curva, uma gradação de características com uma certa distribuição matemática. Isso é a extensão da diversidade, uma curva normal, uma função matemática extremamente útil, porque pode ser descrita por sua média, o valor mais comum dentro da população”, disse.
A diversidade pode ser captada a partir do ponto médio e pelo total de variação existente. De acordo com Suzana, o problema é esse segundo aspecto geralmente é esquecido: “É raríssimo encontrar uma narrativa sobre achados científicos que narre o valor do meio e a taxa de variação, mesmo quando se fala do número de neurônios. Eu sempre faço questão de dizer que há cerca de 86 bilhões de neurônios no cérebro humano, mais ou menos 5%, no mínimo”.
“O problema que a matemática criou ao nos ensinar a descrever a diversidade através do uso da média é que a gente parou de prestar atenção ao resto”, afirmou.
Fotos: IEA-USP