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Teatro na periferia enfrenta dificuldade de financiamento e relação frágil com a universidade

por Victor Matioli - publicado 29/10/2018 14:40 - última modificação 05/12/2018 10:02

No dia 22 de outubro, o IEA-USP recebeu o terceiro encontro do ciclo Centralidades Periféricas, coordenado pela Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, com o intuito de debater a atual cena teatral das periferias.
Centralidades periféricas - Teatro - Mesa
Participaram do encontro representantes de grupos teatrais de São Paulo, Bahia e Rio Grande do Norte

Para o ator e cofundador do grupo de teatro Pombas Urbanas, Adriano Mauriz, as universidades brasileiras ainda dão pouco espaço para o teatro popular criado nas periferias. Com a ressalva de que a academia tem contribuído grandemente para o fortalecimento dos grupos de teatro no Brasil, ele acredita que há espaço para maior participação. “Os jovens alunos do projeto não querem ser tratados como ratos de laboratório pela universidade”, afirmou sobre a abordagem tradicional dos pesquisadores que vão à periferia. Os acadêmicos seriam melhor acolhidos, argumenta, se apresentassem uma contrapartida positiva para a comunidade, como o resultado de suas pesquisas ou livros para a biblioteca do centro cultural gerido pelo Pombas Urbanas.

As observações foram feitas durante o terceiro encontro do ciclo Centralidades Periféricas, realizado no IEA-USP no dia 22 de outubro, com o intuito de debater a atual cena teatral das periferias. O ciclo é coordenado por Eliana Sousa Silva, titular da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do IEA em 2018. Segundo ela, a finalidade dos encontros é “entender como as produções artísticas da periferia estão sendo incorporadas pela universidade e pensar, a médio e longo prazo, como os laços entre esses dois espaços podem se estreitar”.

Adriano Mauriz
Adriano Mauriz: "A academia ainda dá pouco espaço para o teatro popular e de periferia"

Além de Mauriz e Eliana, que mediou o debate, participaram do evento Cell Dantas, integrante do Bando de Teatro Olodum, Edson Paulo Souza, membro fundador do grupo Buraco d`Oráculo, Fernando Yamamoto, fundador do grupo Clowns de Shakespeare, e Carolina de Camargo Abreu, membro do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra) da USP.

A crítica do representante do Pombas Urbanas foi endossada por Dantas, que defendeu abordagens mais naturais e simbióticas: “É fundamental encontrar caminhos menos bruscos para o diálogo com a universidade, porque ambos os lados têm muito a oferecer”. Mauriz defendeu ainda que a academia se concentre mais ativamente em legitimar os grupos de teatro da periferia através do registro e documentação de suas atividades.

Na opinião de Carolina, tanto a USP quanto a Unesp (Universidade Estadual Paulista) defendem historicamente os grupos de teatro. “Professores de diversas áreas, como letras, filosofia, comunicação e artes cênicas, sempre apoiaram o teatro enquanto movimento e se dispuseram a compartilhar pesquisas e materiais com os grupos”, afirmou.

Edson Souza ressaltou a importância da presença dos atores nos espaços universitários como uma maneira de carregar a realidade e as demandas do teatro de periferia para o meio acadêmico. “Um exemplo marcante é o do Emanuel Coringa, da Companhia Arte e Riso, que chegou ao mestrado e está defendendo um método pedagógico baseado no estudo do palhaço”, lembrou. Ele afirmou ainda que a utilização de métodos acadêmicos, que permitem uma melhor sistematização das técnicas e processos, possibilitou a otimização dos registros do Buraco d’Oráculo e, consequentemente, a perpetuação das discussões, pesquisas e oficinas do grupo.

Cell Dantas
Cell Dantas: "É fundamental encontrar caminhos menos bruscos para o diálogo com a universidade"

Teatro e representatividade

O Bando de Teatro Olodum, do qual Cell Dantas faz parte, foi fundado em 1990 por negros oriundos da periferia de Salvador. 28 anos depois do surgimento, os membros originais ainda participam ativamente do grupo. Segundo Dantas, essa origem explica as temáticas abordadas nos espetáculos do Bando, sempre voltadas para a vivência e a realidade da população periférica da capital baiana. “Quando criamos, buscamos dar espaço a essa voz, que é um pouco da nossa essência”, explicou.

Pelo menos duas vezes por ano o grupo oferece à periferia de Salvador oficinas de teatro, música e dança que sempre têm como tema a memória e a identidade do povo negro baiano. “Nas periferias nós encontramos muitos jovens com uma vontade imensa de falar sobre suas próprias produções”, contou o ator. “É essa a finalidade das oficinas: ampliar a voz dos jovens que sofrem com a falta de espaços para se expressar.”

Para o Bando de Teatro Olodum, tão importante quanto as temáticas relacionadas ao povo negro é a representatividade daqueles que encenam as histórias no palco. Faz parte da filosofia do grupo garantir que atores e atrizes negros encarnem a realidade de seu povo. Segundo Dantas, os membros do grupo também são incentivados a manter oficinas e atividades em seus bairros de origem, para garantir a continuidade do diálogo com as periferias.

Abrir espaços e dar voz à população também é uma das principais missões do Buraco d`Oráculo. Segundo Souza, o teatro convencional constrói uma barreira que impede o público de se manifestar e expressar artisticamente. Nas apresentações de rua promovidas pelo grupo nos bairros periféricos da cidade de São Paulo, os moradores são incentivados a participar do espetáculo. “Dar espaço para que as pessoas se manifestem durante as apresentações, seja declamando uma poesia ou interagindo com os atores, é uma forma de conceder o acesso a uma manifestação artística”, defendeu.

Edson Paulo
Edson Souza: "É muito importante que existam equipamentos e ações culturais às margens da cidade"

Papéis do Estado e financiamento

Considerando que garantir o acesso à cultura e ao lazer é um dever constitucional do Estado, Souza acredita que a preservação desse direito depende diretamente da infraestrutura criada pela administração pública. “Para os habitantes da periferia que se interessam por ver, fazer ou ter contato com a arte, é muito importante que existam equipamentos e ações culturais às margens da cidade”, defendeu. Ele lembrou também que muitos dos espaços culturais de São Paulo foram fechados nos últimos anos, o que obrigou os grupos independentes de teatro a ocupar os vazios culturais deixados pelo Estado.

Souza esclareceu, entretanto, que a manutenção das atividades do seu grupo — e de muitos outros — foi garantida pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, criado em 2002 pela Lei 13.279 de 2002. Segundo ele, essa e outras leis semelhantes que surgiram posteriormente balizaram a trajetória do Buraco d’Oráculo e de todos os grupos que escolheram defender e praticar o “teatro descentralizado” nas periferias da cidade.

Para Carolina, o surgimento das leis de fomento e incentivo foi fundamental para a manutenção de grupos históricos, mas principalmente para o surgimento de novas iniciativas. “Nos últimos 15 anos nós observamos uma efervescência na cidade de São Paulo e o surgimento de mais de uma centena de grupos teatrais”, comentou. Segundo ela, as leis de fomento também permitiram que os grupos se desligassem da necessidade de financiamento e criassem livremente: “Ainda que precariamente, as iniciativas asseguraram o desenvolvimento artístico dos grupos sem amarrá-los a objetivos mercadológicos e resultados financeiros”.

Fernando Yamamoto
Fernando Yamamoto: "Precisamos nos organizar para criar uma reaproximação, mas sempre pela via do afeto, no mano a mano"

No caso dos Clowns de Shakespeare, o dilema do financiamento sempre foi ambíguo. Segundo Fernando Yamamoto, o fato de o grupo estar sediado no Rio Grande do Norte adiciona uma camada de marginalização. Para ele, na mesma medida em que os bairros afastados do centro formam a periferia das cidades, os estados afastados do eixo cultural brasileiro formam um outro tipo de periferia. “O grupo sofreu e ainda sofre muito por estar distante dos lugares onde os festivais acontecem e há mais dinheiro disponível”, contou.

Por outro lado, Yamamoto afirmou que o status de “excêntrico”, construído com base na localização do grupo, favoreceu os Clowns em alguns momentos. “Quando as curadorias estavam divididas entre dois grupos equivalentes, geralmente escolhiam o do estado distante no Nordeste”, explicou.

Desafios futuros

Todos os participantes se mostraram preocupados com o futuro das artes no Brasil, em suas diversas expressões. Uma das principais preocupações externadas foi a provável diminuição dos programas de incentivo e fomento ao teatro. Carolina lembrou que o atual secretário de cultura da cidade de São Paulo, André Sturm, lidera uma série de procedimentos que visam redirecionar o financiamento de pesquisa teatral continuada. Para ela, isto subverte um direito conquistado pela classe teatral. “Pela primeira vez, desde sua criação há 16 anos, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro está suspenso”, lamentou. “O que está em xeque não é a gestão cultural do município, mas a promessa democrática de execução das leis”, argumentou.

Carolina de Camargo Abreu
Carolina de Camargo Abreu: "O que está em xeque não é a gestão cultural do município, mas a promessa democrática de execução das leis"

Para Cell Dantas, outra grande preocupação é a crescente desvalorização da arte perante a opinião pública. Ele acredita que o momento de crise política e ânimos acirrados tem surtido efeito inclusive na população mais jovem. “Sou professor de arte em uma escola particular e, diariamente, tenho que convencer meus alunos de que arte é importante”, relatou. Yamamoto argumentou que a reconstrução de um ambiente favorável às artes — e principalmente ao teatro — passa necessariamente pelo contato com as pessoas. “Precisamos nos organizar para criar uma reaproximação, mas sempre pela via do afeto, no mano a mano”, argumentou.

Mauriz pontuou que o financiamento é apenas uma parte, apesar de fundamental, da existência dos grupos de teatro. Para ele, perseverar e continuar com os projetos é o principal. “Quanto ao financiamento, sabemos que será difícil, mas o Pombas Urbanas nasceu em um momento onde não existiam editais, então encontraremos outras formas de nos sustentar”, disse.

A fase difícil deve ser encarada pelos artistas como uma oportunidade de rever os posicionamentos e os modos de fazer do teatro, defende Edson Souza. Ele acredita que as incertezas sobre o futuro abrem portas para saídas criativas e inovadoras. “A aproximação dos movimentos sociais pode ser uma forma de construir um teatro político e garantir a existência dos grupos”, argumentou.

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Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP