Pandemia ressalta desigualdade urbana
Em dois encontros intitulados Confinamento, Desigualdade e Vida Urbana, nos dias 4 e 8 de maio, pesquisadores do Grupo de Estudos de Teoria Urbana Crítica do IEA refletiram, a partir de uma leitura da realidade urbana brasileira, sobre o momento crítico que o mundo vive sob a pandemia da Covid-19.
Segundo os pesquisadores, é no cotidiano das cidades que podem ser constatadas e compreendidas as mudanças radicais promovidas pela pandemia. “Longe de ser democrática, sua expansão se realiza de forma desigual, aprofundando o drama urbano.”
Os encontros contaram com oito expositores: Ana Fani Alessandri Carlos (FFLCH-USP), coordenadora do grupo; Cibele Rizek (IAU-USP); Paulo Cesar Xavier Pereira (FAU-USP); Cesar Simoni Santos (FFLCH-USP); Glória da Anunciação Alves (FFLCH-USP); Luiz Antonio Recamán Barros (FAU-USP); Gustavo Prieto (Unifesp); e Paolo Colosso (UFSC). Ana Fani e Cibele também atuaram como mediadoras, a primeira no dia 4 e a segunda no dia 8.
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Ponto de partida
Para Cibele Rizek, é preciso tomar como ponto de partida para a discussão sobre os efeitos da pandemia as restrições orçamentárias impostas pela Emenda Constitucional 95, aprovada no final de 2016, com cortes significativos de verbas para saúde, educação, moradia e ciência e tecnologia. “Agora, às crises econômica, social e política somou-se a crise sanitária”.
Vários processos já estavam em curso quando surgiu a Covid-19, de acordo com a pesquisadora. “Os sindicatos e partidos estavam desarmados. Os movimentos sociais, marcados pela solidariedade, estavam quebrados. Os direitos sociais estavam corrompidos por ideias como a do empreendedorismo e da meritocracia. E ampliou-se o poder do capital sobre o trabalho com as reformas trabalhista e da Previdência.”
Ela destacou as assimetrias sociais radicais, fruto da desigualdade. “Isso impossibilita o isolamento em territórios populares. O isolamento é uma questão de classe social.”
“Estamos diante de uma política da morte produzida pelo forte desinvestimento em moradia, saúde, educação e ciência e tecnologia.”
Para Cibele, há um avanço ainda maior do capital, tendo como pano de fundo a “grande constelação de crises”. Isso fica evidente na possibilidade de demissão, suspensão ou redução de salários e obrigatoriedade de férias, afirmou. Além disso, ela aponta a intensificação das formas de controle do trabalho feito em casa.
Recursos e direitos desiguais
Ana Fani Alessandri Carlos disse que as imagens de cidadãos em imensas filas nas agências da Caixa Econômica Federal para tentar receber o auxílio emergencial de R$ 600,00 indicam “a barbárie que vivemos, não só com a pandemia".
Ela afirmou que as mortes nas áreas de populações mais vulneráveis, nas periferias, exemplificam a desigualdade de uma sociedade de classes.
“É uma questão social que mostra como os cidadãos participam de forma desigual na riqueza gerada pela sociedade. A hierarquia social se concretiza em hierarquia urbana.” Disse que não há apenas uma separação no espaço, mas também na repartição da riqueza, da qual “a propriedade do solo é uma expressão".
A desigualdade é real não apenas em termos de recursos, mas também na fruição de direitos, afirmou. “Um exemplo claro é o do auxílio emergencial, que coloca o cidadão numa situação humilhante em filas durante toda a noite, com problemas sanitários, venda de vagas e outras dificuldades.”
A violência presente na forma como a urbanização se produz na cidade de São Paulo também é um indicador de como o Estado distribui recursos e orienta políticas públicas, de acordo com a pesquisadora.
“As políticas liberais não buscam mais do que reduzir os custos sociais. São feitas com a diminuição dos gastos com a saúde e a educação. A lógica do crescimento econômico vem acompanhada da violência, da política do crescimento centralizada."
“A pandemia faz com que o drama urbano mostre sua face desumana", disse Ana Fani. "O que preenche o vácuo é a solidariedade, que vem das urgências, mas exige o fim das condições que criaram as urgências. O que se quer exatamente é que a solidariedade não seja necessária, pois os direitos devem ser iguais para todos.”
Esvaziamento seletivo
Para César Simoni Santos, o esvaziamento das cidades torna evidente, do ponto de vista das ciências humanas e sociais, que há um distanciamento dos polos da desigualdade a ser analisado.
“O elemento que contraria o esvaziamento são os serviços essenciais, que definem quem ocupa as ruas. A ideia de serviço essencial tem um fundamento social que ultrapassa a especificação normativa. É um fundamento ligado à reprodução biológica da vida e em estreita conexão com a noção de urgência, crivo da permanência no espaço público.”
As urgências não são uma dádiva da natureza, mas um produto social, segundo o pesquisador. Dessa forma, os grupos sociais são expostos de forma diferenciada à possibilidade de contágio. “As urgências das metrópoles brasileiras têm deixado as ruas cheias. Que tipo de esvaziamento pode-se esperar nas periferias se as urgências da vida colocam as pessoas em atividade, contrariando a única forma de combate à transmissão da doença?”
O que há, disse, é um esvaziamento “totalmente seletivo”, que tirou a classe média das ruas. “Tudo que podia foi transferido para o lar e ficou nas ruas tudo ligado ao atendimento das urgências do regime econômico, que determina a delegação ao mais pobres o funcionamento da reprodução econômica.”
Há também uma repartição profunda entre o trabalho que pode ser feito em casa e aquele mecânico, muscular, que exige a presença física, ressaltou Santos. Essa diferença é radicalizada neste momento por formas muito particulares de penetração dos interesses econômicos: “As pobres são delegadas as urgências da cidade, mas também há uma invasão das casas, desestruturando as rotinas domésticas e capturando os tempos ociosos e os espaços de afeto e lazer, que passam a ser entregues à reprodução econômica.”
Debate urbanístico
Luiz Antonio Recamán Barros discutiu o que ele considera o debate necessário a ser feito da arquitetura e do urbanismo sob o efeito da pandemia e as desigualdades sociais que ela reforça.
Ele disse que se discute três cenários possíveis para o pós-pandemia: uma grande transformação na sociedade à maneira da ocorrida no Renascimento; uma grande catástrofe, resultando numa maior exploração dos mais pobres; uma grande depressão econômica, seguida de uma volta ao que era antes.
“Teremos, provavelmente, uma combinação dessas três possibilidades. Ainda está em disputa a abertura que a ruptura e transformações neste ciclo histórico causarão. Vale a pena refletir, do ponto de vista do urbanismo, para que a possibilidade aberta não seja uma nova onda de ideologias sobre e racionalidade sistêmica de controle da vida.”
Segundo ele, na gênese do urbanismo no século 19 estão presentes as preocupações com as epidemias e a repressão popular. Afirmou que esses mitos estão de volta, numa repetição histórica não desejável. “Fala-se que o vírus deve ter surgido nas franjas do capitalismo chinês, fruto da pobreza confinada nas cidades por causa da precariedade das formas rurais de vida e que essa pobreza reproduz as práticas do campo.”
Se ele vem desse universo e se dissemina nas grandes cidades, "há um grande paradoxo diante do elogio sempre feito às metrópoles em sua dimensão quantitativa de pessoas, produção, diversidade e outros fatores".
"Agora que o vírus chega de todos os lados, a cidade é criticada como um local de diversidade e de risco. É curioso como conservadores e progressistas tendem a concordar com a necessidade de descongestionamento territorial. Nova York passa a ser o trágico exemplo do que não deve ser repetido.”
Riscos de retrocesso
“Para pensar e agir nas cidades nesse quadro criado pela pandemia, precisamos estar cientes de que nossa sociedade produziu ao mesmo tempo o que há de melhor e o de pior”, afirmou Paolo Colosso.
"Fomos impactados por duas grandes crises. A primeira foi a econômica internacional iniciada em 2008. A segunda, a da pandemia, é alavancada por aquela. São os dois principais marcos históricos do século até agora. E eles demonstram que as democracias capitalistas só continuam a ser chamadas assim por força do hábito."
No caso brasileiro, disse haver "uma distribuição desigual dos sofrimentos". Apontou o fato de mais de 6 milhões de famílias do país não terem moradia digna e quase metade da população não ser atendida por coleta e tratamento de esgoto. "Os grandes empresários conseguem em algumas horas a liberação de grandes somas e os R$ 600,00 de auxílio emergencial demoram semanas para sair e com inúmeras complicações."
"Nossa geração acreditou no progresso, mas a "Dialética do Conhecimento", de Adorno e Horkheimer, nos ensina que a realidade não caminha só para a frente, que podemos caminhar a passos largos rumo à regressão." Ele também citou as “Teses sobre o Conceito de História”, de Walter Benjamin, para quem "nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie".
No entanto, Colosso considera que nem todas as saídas estão bloqueadas. O pensamento crítico tende a reforçar o clima de bloqueio e ater-se apenas à regressão, disse. "Ele precisa pensar nas contradições acirradas e estar preparado para o que está acontecendo. Precisa ser ousado e superar a melancolia e o cinismo."
Para o pesquisador, o momento é de identificar onde está o impulso da juventude, a abertura da educação popular, o desejo por transformações e atentar para o movimento das mulheres que constroem a primavera feminista e aos movimentos populares que são referência no cuidado com os mais pobres.
“Cabe a nós construirmos um futuro mais generoso. Isso vai ser diário, mas a micropolítica não será suficiente. Precisamos de uma estratégia macropolítica ambiciosa". Entre as medidas que defende estão a taxação de grandes fortunas, da remessa de lucros para o exterior, dos bancos e dos sonegadores e a garantida de saúde e renda, universalização do saneamento básico e recursos para a pesquisa.
Construção do urbano
Para Paulo César Xavier de Barros, haverá um antes e um depois da pandemia e será preciso pensar sobre a vida e seu sentido no pós-Covid-19. Considerando um futuro mais distante, afirmou que a crise econômica que já vivíamos continuara e a dúvida é se será possível encontrar oportunidades que se traduzam em possibilidades de algo melhor.
Quanto ao isolamento a que todos estão sujeitos, disse não ser uma alienação, "assim como estar só não é uma condição para a solidão". Exemplificou com o fato de lideranças de favelas utilizaram tecnologia digital para falar da precariedade do ambiente urbano.
O que a universidade pode fazer sobre as desigualdades urbanas é compreendê-las, afirmou. "É preciso repensar como as nossas cidades têm sido construídas. A lógica dessa construção encaminha para o desastre urbano."
Impactos na educação
Glória da Anunciação Alves tratou dos impactos da pandemia na educação e das perspectivas para a área. Para ela, falar de educação é falar das emergências da vida da população.
“As escolas públicas são onde muitas crianças de baixa renda têm sua única refeição do dia. Como alimentá-las em casa, onde os pais estão isolados e sem recursos e o Estado demora a oferecer uma solução? São Paulo criou o Merenda em Casa, que destina R$ 55,00 por mês para cada criança, o que significa o mesmo que não as alimentar.”
Em relação ao ensino em si, ela apontou a diferença nas respostas à pandemia dadas pelas escolas privadas e pelas públicas. As privadas começaram o ensino a distância e aulas remotas logo depois do surgimento da Covid-19 na cidade de São Paulo, ao passo que "os governos do estado e da capital demoraram quase um mês para indicar alguma solução, e partindo do pressuposto de que todos possuem computadores ou celulares e acesso à internet”, comentou.
Segundo ela, haverá piora no ensino para crianças de baixa renda e crescimento dos negócios na educação. “Grandes empresas estão criando plataformas de ensino via internet. Essas novas tecnologias vão imperar com o argumento de que nas escolas privadas os professores já são pessoas jurídicas e há falta deles nas escolas públicas."
Milícias e neoliberalismo
Nesse quadro de desigualdades e falta de direitos ressaltado pela eclosão da pandemia, Gustavo Prieto tratou de mais um componente de violência presente nas periferias desamparadas pelo Estado: a atuação das milícias no Rio de Janeiro e suas relações políticas e econômicas.
Ele disse que as práticas milicianas participam da razão neoliberal ao valorizarem, entre outros aspectos, um mercado imoral como mecanismo de reprodução de recursos, a ordem, a moralidade tradicional, a igreja e o passado mítico ditatorial da segurança.
Para ele, a atuação das milícias as aproxima das pautas da extrema direita, do liberalismo econômico, do conservadorismo cristão, do racismo e do ódio ao Estado. Além disso, "elas maximizam os rendimentos políticos" dos candidatos e governantes que apoiam.
Prieto mencionou declarações do então deputado federal Jair Bolsonaro em defesa das milícias em 2008, durante pronunciamento na Câmara dos Deputados e em entrevista à BBC.
"A retórica do bandido bom é bandido morto caracteriza as milícias como um mal menor e endossa práticas autorizadas de terceirização da violência", afirmou.