Veículos independentes marcaram a última década do jornalismo brasileiro
Tiago Queiroz, Eugênio Bucci, Adriana Martinez e Daniel Bramatti |
Algumas das mudanças que mudaram a cara do jornalismo na última década foram observáveis ainda no calor das manifestações de junho de 2013, consideradas por jornalistas e pesquisadores um marco para a área. Os grandes jornais foram repelidos, enquanto novos comunicadores ganharam destaque em meio aos black blocs e à repressão policial.
Para Eugênio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Arte (ECA) da USP, exemplo do novo formato que surgiu à época é a Mídia Ninja, que chegou a ter trechos de suas captações usadas pelo Jornal Nacional: “Era uma observadora que chegava a lugares onde os repórteres convencionais não podiam chegar”, disse durante o evento “O Jornalismo Brasileiro na Última Década: Crise, Diversidade e Inovação”, realizado no dia 22 de agosto no IEA. O seminário foi organizado pelo Observatório da Imprensa, Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo e o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade do IEA.
Na análise de Eugênio Bucci, “as jornadas de junho se bifurcaram” durante a última década. De um lado, se destacam iniciativas populares de inclusão e diversidade. Em outro caminho, os manifestantes apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro e atuaram no dia 8 de janeiro, quase dez anos depois. Isso ficou nítido nas imagens de Brasília em 2016 na ocasião do impeachment de Dilma Rousseff, quando a Esplanada dos Ministérios estava dividida por um enorme muro com pessoas de vermelho de um lado e verde e amarelo de outro. “Ali já havia uma iconografia”, afirmou Bucci.
Para Adriana Garcia, jornalista associada ao Projor - Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, o Brasil deixou de conciliar suas partes diferentes. “O país foi deixando de ser uma coisa e outra, e começou a ser uma coisa ou outra”, afirmou. Um dos elementos dessa radicalização, segundo a jornalista, foi o surgimento no Brasil do Facebook em 2008, quando “as pessoas passaram a ser dependentes de fontes de informação que não necessariamente têm protocolos de apuração”.
Daniel Bramatti, editor do Estadão Verifica, destacou que existe um descrédito muito grande por parte de uma parcela da população em relação a jornais estabelecidos. “Eu trabalho todo dia com desinformação, é impressionante ver como tem gente que não vai se deixar convencer por qualquer fato se ele vier da Globo”, afirmou. Segundo Bramatti, esse é um caldo de cultura que foi capturado pela extrema-direita.
Sobre a relação entre a desinformação e as jornadas de junho, Bramatti defendeu que, mesmo existindo uma correlação entre os fenômenos, não é uma relação de causa e efeito. “O impacto das jornadas de 2013 na imprensa é limitado diante dos demais fatores que tiveram impacto nas últimas décadas”, defendeu Bramatti. “Vejo que Junho foi um sintoma de algo que estava e continua acontecendo”.
Caminho à esquerda
Ciça Cordeiro, Paulo Talarico, Sanara Santos e Antonio Junião |
No outro lado da encruzilhada a que se referiu Bucci estão veículos como a Ponte Jornalismo. Criada em 2014, tem a proposta de cobrir as violações de direitos humanos praticadas pelo Estado. Um de seus cofundadores, o ilustrador Antonio Junião contou durante o encontro que não via as redações tradicionais cobrindo o tema sob a perspectiva das vítimas dessas violações. “Quando a Ponte nasceu essas pessoas não estavam sendo ouvidas.”
Junião afirmou que manchetes como “População ateia fogo em ônibus e atrapalha o trânsito” eram comuns na imprensa, mas isso mudou. Quando os jornalistas alternativos chegam ao local de algum protesto na periferia, a grande imprensa já está lá. Mas, para Junião, não houve uma tomada de consciência. A mudança ocorreu “porque a população passou a cobrar essa mudança”, defendeu.
Ele acredita que o perfil dos jornalistas da grande imprensa impede coberturas sob a perspectiva das periferias. “Eu sempre era o único negro nas redações”, disse. Segundo o Perfil do Jornalista Brasileiro, em 2021 apenas 9,3% dos jornalistas se declararam pretos. “A maioria dos jornalistas da Ponte estava no jornalismo tradicional, mas cansaram de tentar mudar o sistema por dentro”, afirmou o ilustrador.
Sanara Santos, jornalista do Laboratório Énois — entidade que está organizando um projeto de censo de diversidade nas redações do Brasil — afirmou que as pautas de inclusão ainda não estão enraizadas no mercado: “Esse debate existe pouco nas grandes redações, está mais presente nas pequenas iniciativas”. De acordo com ela, dos 106 veículos que aceitaram fazer parte do levantamento, apenas cinco são lidos como grandes redações.
A falta de diversidade e inclusão também se reflete na escolha das fontes jornalísticas, na avaliação de Santos. Ela contou que os estudos do Laboratório Énois detectaram, no jornalismo tradicional, a mesma fonte sendo repetidamente usada para determinado assunto por mais de uma década.
Outro tema tratado foi o capacitismo. Ciça Cordeiro, jornalista do Talento Incluir, afirmou que os jornais usam termos inadequados e só costumam procurar pessoas com deficiência para falar de problemas como falta de acessibilidade. Para isso, o Talento Incluir lançou o “Guia de Comunicação Inclusiva Sobre Pessoas com Deficiência”, que aborda positivamente o universo de pessoas com deficiência.
Financiamento
Veículos independentes, como a Agência Mural e a Ponte Jornalismo, passam por desafios financeiros que os fazem buscar apoios pontuais de instituições. “São apoios que vêm, ficam por dois ou três anos e depois temos que correr atrás de novo”, disse Junião. “A Ponte cria novos modelos de negócios, mas o financiamento é um gargalo”.
Carlos Castilho, jornalista e pesquisador do Observatório da Imprensa, afirmou que projetos jornalísticos orientados unicamente para a produção de notícias estão sofrendo uma queda gradual e contínua de receita financeira. Ele analisou que “a notícia está se transformando em uma commodity intercambiável com a publicidade”.
Castilho mostrou preocupação com a função social do jornalismo, por isso, defendeu que a questão financeira dos veículos é fundamentalmente política. Uma das soluções propostas por Castilho é a diversificação de receitas. “Criar certas fontes de receita que vão desde o paywall, até assinatura, eventos e prestação de serviços”, sugeriu.