O desafio de repensar a ação profissional docente
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Por Rodrigo Ratier e equipe
Quando se discute a profissão docente no Brasil, quase sempre a má remuneração ocupa o centro do debate. Afinal, como manter professores dispostos e motivados num contexto onde é preciso trabalhar muito para ganhar tão pouco? O problema é que os atuais desafios dos profissionais da educação não se limitam à questão salarial. O que está em jogo é o papel do professor num mundo onde transmitir conteúdos para os alunos já não basta.
Repensar essa identidade profissional foi a questão que Elie Ghanem e Luís Carlos de Menezes buscaram equacionar durante a palestra “A ação do professor como profissional”. Partindo de pontos diferentes – o primeiro, da própria etimologia da palavra “professor”; o segundo, da necessidade de desenvolver na escola as competências propostas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – Ghanem e Menezes defenderam o protagonismo do professor na formulação das políticas públicas e na construção de uma escola capaz de atender a todos os alunos com igualdade.
O saber dos livros e o saber da experiência
Tradicionalmente, a tarefa de ensinar sempre esteve centrada na arte do discurso. Tanto é que a raiz grega da palavra “professor” é a mesma da palavra “profeta”, que vem de profetis – discursar em público. Da mesma origem nasce o termo “profissional”, que é aquele que tem domínio da experiência real em determinado aspecto. O professor seria, portanto, o sujeito capaz de articular no discurso a reflexão filosófica e o conhecimento científico com a experiência didática, com o intuito de educar outros indivíduos. Na prática, porém, essa junção não tem acontecido. “A categoria do magistério da escola básica no Brasil vem se mostrando distante do saber dos livros e despreza o saber da experiência”, diz Elie Ghanem, da Faculdade de Educação da USP.
Duas razões explicam o distanciamento. Em relação aos conhecimentos filosóficos e científicos, o acesso restrito aos livros e à produção acadêmica das universidades limita os saberes do professor. São também pouco acessíveis os livros didáticos resultantes de boa pesquisa acadêmica. "Já a experiência, acumulada por árduos processos de tentativa e erro, acaba adquirindo formas marginais, como a troca com colegas em caronas ou no intervalo das aulas.” Acaba, assim, sendo desconsiderada, afirma o professor.
Há ainda uma terceira razão que, segundo o pesquisador, ajuda a explicar a fragilidade da profissão no Brasil: a ausência de entidades representativas da própria categoria capazes de debater e garantir a qualidade da formação docente. A ação dos sindicatos ainda se restringe às reivindicações salariais, de modo que não há espaço para discutir a responsabilidade pública dos educadores sobre a qualidade da escola. Não há conselho profissional à semelhança dos conselhos de medicina ou da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O resultado é que o papel de dizer o que fazer e o que não fazer na sala de aula recai, principalmente, sobre o estado, que opta por prescrições burocratizadoras das práticas docentes. “O desamparo do exercício profissional pelos sindicatos dificulta a participação e o envolvimento do professor nas políticas públicas”, conclui Ghanem.
A resposta a esse modelo, definido pelo pesquisador como autoritário, é reforçar a identidade do professor por meio da dimensão profissional: “Não é possível fazer frente a esses desafios se nos consideramos meros funcionários. É preciso valorizar a nossa dimensão profissional, fortalecendo-nos ao valorizar os saberes da experiência e integrando-os ao saber dos livros”.
Da escola seletiva à escola participativa
Luís Carlos de Menezes, formador de professores, professor sênior do Instituto de Física da USP, acredita que as mudanças da profissão docente precisam ocorrer em função das novas necessidades que a escola precisa suprir.
Pergunta da plateia |
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Livro didático ajuda ou atrapalha? Depende. Esses materiais didáticos muitas vezes não são pensados para a sala de aula, mas para as tarefas de casa ou para legitimar, diante da família, aquilo que o estudante está aprendendo. Eles precisam, portanto, evoluir para manter sua relevância frente à avalanche de informações disponíveis na internet ao alcance de todos. Isso traz impactos profundos ao mercado editorial, que tende a perder espaço. “É preciso adequação dos livros didáticos aos novos tempos. Se as editoras bobearem, caem do cavalo sem precisar de ajuda, porque a moçada já aprendeu a se informar de outro jeito”, diz Luís Carlos de Menezes. O especialista diz, ainda, que é possível pensar em novas aplicações para esse material. Em Singapura, exemplo, as obras são usadas como mais um suporte entre vários recursos disponíveis. Cabe aos professores saber manejar as opções com autonomia. |
O ensino tradicional, tido pelo especialista como o da a escola da era industrial, não foi feito para oferecer a todos uma educação de qualidade, mas sim para selecionar e excluir. Esse modelo lamentavelmente ainda mantido, produz uma espécie de pirâmide: na base, alunos semianalfabetos, capacitados para trabalhos braçais e repetitivos; no meio, os estudantes com preparo suficiente para algum nível de comando nas fábricas e no campo. E, no terço final, os “engenheiros de prancheta”, profissionais de nível superior, mas ainda pouco capazes de criar, e no topo os organizadores da produção e dos serviços.
“Só que, hoje, o operário virou robô, o encarregado virou o dispositivo eletrônico e o engenheiro de prancheta virou o Autocad. Ou seja, a escola continua selecionando uns poucos para chegar no topo da pirâmide, mas não tem mais emprego para essa gente que fica para trás”, alerta Menezes.
Se a escola atual quiser preparar pessoas capazes de viver nesse mundo em que as máquinas já fazem quase tudo, ela precisa abandonar o modelo conteudista. “A ideia que se tinha de currículo era uma lista de pontos do discurso de quem ensina. Mas, para novas competências, o currículo tem que ser o percurso de atividades de quem aprende”, diz o formador. É esse conceito, segundo Menezes, que está por trás da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que elenca 10 competências gerais que os estudantes precisam desenvolver durante a vida escolar.
Um trabalho ancorado na prática
A atuação do professor também precisa mudar nesse sentido. Menezes defende que, no lugar de uma prática centrada no discurso, como Ghanem exemplificou, é necessário implementar um método de trabalho fundamentado na prática. Isso porque só se pode aprender competências praticando-as. Por exemplo: uma das competências da BNCC é a capacidade de argumentar, defendendo seus pontos de vista e ponderando os argumentos contrários. Para que uma aula ajude os estudantes a desenvolverem essa competência, as atividades precisam colocá-los em uma posição ativa, na qual eles possam discutir problemas, levantar hipóteses e dialogar sobre elas.
Quem é Luís Carlos de Menezes |
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Doutor em Física pela Universidade Regensburg, é Professor Sênior do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Membro do Conselho Estadual de Educação em São Paulo. Consultor da UNESCO para propostas curriculares. Principais focos de trabalho em educação: currículos para a educação básica, formação de professores e ensino de ciências. |
Quem é Elie George Guimaraes Ghanem Junior |
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Doutor em Educação pela USP, é professor na Faculdade de Educação da universidade. Atua principalmente nos temas: mudança educacional, qualidade da educação, gestão escolar e democracia. É responsável pelo grupo de pesquisa Ceunir-Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional. |
Para Menezes, esse modelo ainda não é comum no Ensino Fundamental. Mas a inspiração pode vir de uma outra etapa da educação básica: “A boa Educação Infantil, onde partícipes ativas são as crianças. O papel da professora é como o da produtora do espetáculo, e quem protagoniza é a criança”. As demais etapas também podem promover aprendizagem ativa.
O formador ainda sugeriu que a mudança na prática docente deve incluir uma revisão profunda no conceito de avaliação. Se é verdade que as competências só podem ser aprendidas na prática, então provas escritas ou de múltipla escolha, que visam apenas verificar a retenção de conteúdos, não são adequadas para esse novo modelo. É preciso, portanto, fazer avaliação em percurso.