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Que a privacidade não vire uma utopia

por Fernanda Rezende - publicado 28/07/2021 14:50 - última modificação 13/09/2021 09:10

Por Luciana Moherdaui, jornalista, autora de de Guia de Estilo Web – Produção e Edição de Notícias On-line e Jornalismo sem Manchete – A Implosão da Página Estática; professora visitante na Universidade Federal de São Paulo e pós-doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Por Luciana Moherdaui, jornalista, autora de de Guia de Estilo Web – Produção e Edição de Notícias On-line e Jornalismo sem Manchete – A Implosão da Página Estática; professora visitante na Unifesp e pós-doutora pela FAU-USP.

Não há dúvidas sobre a importância de se discutir coleta e tratamento de dados pessoais feitos por empresas, governos e cidadãos. A Europa tem uma lei excepcional, cujo teor inspirou a brasileira. Mas há muito o que avançar.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), elaborada nos governos do PT (Partido dos Trabalhadores), sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (2018) e colocada em vigor pelo atual presidente Jair Bolsonaro (2020), trouxe segurança jurídica às pessoas.

Porém, há ainda um importante vácuo a ser preenchido: o da abordagem criminal. Mesmo sendo uma legislação nova, a LGPD não alcança todas as questões envolvendo direitos à privacidade, como, por exemplo, no âmbito criminal, ao contrário do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) europeu, com legislação própria.

Por falta de entendimento entre as polícias federal e estadual e o Ministério Público Federal, existe hoje essa lacuna para a segurança pública, sem previsão de esse debate ser iniciado no Parlamento. Está parado na Câmara dos Deputados o projeto, chamado de LGPD Penal, para tratar especificamente disso, sobretudo de questões relacionadas ao reconhecimento facial.

Extrativismo

A ausência de uma LGPD Penal é um dos casos que indicam que a coleta e o tratamento de dados realizados em grande escala, intitulado extrativismo de dados, por Evgeny Morozov, vai além das Big Techs, das instituições financeiras e de governos, e a popularização da Internet das Coisas irá amplificar imensamente essas ações.

Embora diversos pesquisadores importantes tenham abordado os impactos do extrativismo de dados, a exemplo de Morozov, Shoshana Zuboff, Kai-Fu Lee e David Lyon, entre outros, não há um aprofundamento a respeito de um regramento legal ou de uma regulamentação.

Morozov coloca em dúvida os aspectos legais em Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política (2018): “alguns intelectuais proeminentes do Vale do Silício até exaltam o surgimento de uma regulação algorítmica, celebrando-a como uma alternativa poderosa à aparentemente ineficaz regulação normal”.

Ao contrário de Morozov, Lee tem uma perspectiva otimista em relação à coleta e ao tratamento de dados. Em seu AI Superpowers: China, the Silicon Valley, and new world order, o autor defende que a Inteligência Artificial (IA), se bem usada, criará valor econômico e prosperidade nunca vista na história.

Com postura diferente da apresentada no documentário O dilema social (2020), em que defende a proibição dos mercados de Big Techs, Zuboff, embora mencione oposição a empresas de tecnologia, no artigo Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação, que integra o livro Tecnopolíticas da vigilância – Perspectivas da margem, organizado por Fernanda Bruno (2018), lembra dos movimentos de coleta de dados que enfrentam oposição substancial na União Europeia (UE), bem como nos Estados Unidos.

Rastreamento

Ela, porém, não vai além da menção, assim como não faz também abordagem mais aprofundada em seu A era do capitalismo de vigilância – A luta por um futuro humano na nova fronteira, recém-lançado no Brasil. Sua preocupação se concentra no consentimento para o rastreamento e o monitoramento contínuos e, consequentemente, na distribuição dos direitos de privacidade.

Na contramão de Zuboff, Lee é um crítico das propostas de regulamentação das Big Techs. Na opinião dele, “nossos governos precisarão olhar uns para os outros avaliando compensações espinhosas em privacidade, monopólios on-line, segurança digital e viés algorítmico”.

Lee afirma que é um aprendizado observar a regulamentação na Europa, nos Estados Unidos e na China: “enquanto a Europa optou por uma abordagem mais pesada (e tentar arrancar o controle das empresas de tecnologia), China e EUA interviram após tecnologia e mercado se desenvolverem”.

Não se trata de uma abordagem pesada. Pelo contrário. O grande desafio das legislações existentes sobre dados pessoais é garantir que não haja desvio de finalidade, como apontou a especialista em dados pessoais Laura Schertel no II Seminário Internacional sobre a Lei Geral de Proteção de Dados realizado em abril passado. Outra preocupação pertinente refere-se a violações de privacidade, mesmo em países com normas jurídicas a respeito de dados.

Governança

Não é sem razão que diversas organizações do Brasil e do mundo, como Access Now, divulgaram, em junho deste ano, carta aberta a governos, empresas e legisladores, entre outros, na qual pedem banimento global de usos de reconhecimento facial e outros reconhecimentos biométricos remotos que permitam vigilância em massa, discriminatória e enviesada. O documento cita o Brasil como um dos que fazem uso dessa tecnologia.

Embora o Brasil possua uma legislação específica – após a sanção da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em 2018, o país passou a integrar a Convenção 108, espinha dorsal da proteção de dados da Europa –, advogados especialistas que colaboraram diretamente para a redação do projeto final alertam para a perda do controle de informações por parte da população. Apesar de a lei estar em vigor, a aplicação de punição terá início somente em agosto deste ano.

“A sociedade não está preparada para lidar com dado pessoal com respeito à confiabilidade, à integridade e à confidencialidade que a lei estabelece. É uma sociedade que está exposta”, disse Fabrício da Mota Alves, um dos integrantes do grupo que elaborou a LGPD, no evento Privacidade acima de tudo – LGPD e Prevenção contra Fraudes, em maio.

Na opinião do advogado, a governança é o pilar de todo sistema de proteção de dados. “Pois um dos pontos mais importantes da proteção de dados é a prestação de contas, o que importa é a confiança. Empresas custodiam dados, tratam dados que não lhes pertencem.”

É verdade que a incapacidade de os governos tratarem dados faz com que as Big Techs assumam essa função e atuem como facilitadoras para o que o Facebook nomeou hackeamento de percepção em relatório sobre operadores de influência divulgado recentemente.

Esse é o resultado da datificação que altera a forma de produzir conhecimento sobre indivíduos para fins de análise preditiva. As pessoas esparramam dados por todos os lugares – desde farmácias, dispositivos móveis e redes sociais, como bem registrou o documentário Coded Bias (2020), sem muitas vezes reconhecer os riscos.

Sendo assim, é preciso refletir a respeito do arcabouço jurídico disponível e da elaboração de regramentos legais para dar conta da complexidade atual, conforme defendeu Eugênio Bucci à Folha de S. Paulo no dia 10 de julho de 2021. Embora seja razoável concordar que as tecnologias não são planejadas, em um cenário de permanente estado de transição, é possível encontrar um equilíbrio nesse descompasso.