Grupo de Estudos Ci.CRESS: Ciência, Crença, Sentido e Saúde
A proposta do grupo, criado em junho de 2020, é promover um diálogo interdepartamental, interdisciplinar e interinstitucional sobre as relações entre ciência, sistemas de crenças, sentido da vida e saúde.
O grupo espera propiciar a interação entre pesquisadores da USP que estudam, direta ou indiretamente, sistemas de crença, sejam eles religiosos, filosóficos, pseudocientíficos, políticos ou de qualquer outra natureza, além de aproximá-los a pesquisadores de outras instituições com o mesmo interesse, segundo seu coordenador, o professor Wellington Zangari, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia (IP) da USP.
Ele acrescenta que o Ci.CRESS também pretende fomentar uma discussão sobre princípios e parâmetros para a criação de um centro e/ou um programa de pós-graduação nessa temática na USP.
O intuito é estimular um debate “epistemológico, metodológico e interdisciplinar que permita avaliar o impacto da adoção dos diferentes sistemas de crenças e de práticas a elas ligadas sobre o sentido conferido à vida e sobre a promoção da saúde ou da doença”.
Do ponto de vista empírico, o grupo pretende investigar a relação entre os sistemas de crenças e as representações de saúde e doença e suas implicações, entre as quais as científicas, históricas, sociais, culturais e psicossociais.
Outro aspecto a ser discutido são as políticas públicas que tratam da temática, avaliando-as em função dos conhecimentos científicos disponíveis e propondo sugestões para seu desenvolvimento
Zangari explica que a proposta de criação do grupo nasceu da experiência dos dez anos de funcionamento do Laboratório de Estudos Psicossociais: Crença, Subjetividade, Cultura e Saúde (InterPsi) do IP-USP, coordenado por ele e pela professora Fátima Regina Machado. A proposta também se beneficia das atividades do InterPsi com outro laboratório do IP-USP, o Laboratório de Psicologia Social da Religião (LabPsiRel), também coordenado por ele, em parceria com o professor Geraldo José de Paiva.
De acordo com Zangari, as experiências dos dois laboratórios tornaram nítido que os esforços de compreensão de seus temas de estudo não poderiam ser alcançados em sua totalidade sem que fosse ampliado o espectro do fenômeno estudado. “Uma das constatações é que as crenças e experiências anômalas/religiosas não podiam ser adequadamente investigadas sem a compreensão do fenômeno da crença per se.”
Também tornou-se cada vez mais necessário recorrer a outras áreas de conhecimento na tentativa de discussão do fenômeno da crença, dada sua complexidade e exigência pela interdisciplinaridade, afirma o coordenador.
Outro aspecto motivador foi o fato de o InterPsi, “criado sem pretensão de atuação na área clínica, ter sido eticamente obrigado a responder à crescente demanda por ajuda psicológica por parte de indivíduos que sentem algum sofrimento derivado do que pode ser chamado de ‘conflitos de crenças’”.
Segundo Zangari, é cada vez mais frequente nos estudos dos membros do laboratório e em sua atuação clínica casos de ansiedade, depressão, tentativas de suicídio e suicídios nessa população.” Isso acabou por ensejar a necessidade de o laboratório lidar com a questão da saúde, acrescenta.
Um aspecto adicional resultante do trabalho do laboratório com essas pessoas é a referência que elas fazem a perda de sentido para a vida, falta de sentido para a vida e falta de propósito em viver. “Fatores históricos, culturais, econômicos, políticos, dentre outros, tiveram que ser trazidos à discussão para tornar menos obscuras as razões daquele sofrimento.”
As reflexões preliminares do laboratório a respeito da tríade crença, sentido e saúde levaram em conta a ideia de que um “mundo impermanente” - do ponto de vista das ideias do filósofo polonês Zygmunt Bauman - pode levar ao sofrimento, afirma Zangari.
Diante de desse “cenário de mudanças e da frouxidão dos modelos consagrados, o ser humano seria inescapavelmente lançado ao caos da desorganização social e pessoal”. Para o coordenador, as perguntas que podem ser feitas são:
- até que ponto essa liquidez [na definição de Bauman] tem levado à incapacidade de conferir sentido e propósito à vida?
- tal falta de sentido estaria ligada causalmente ao crescente número de casos de depressão e suicídio, como os que têm ocorrido com estudantes universitários em nosso meio?
- poderíamos encontrar na força da adesão a sistemas de crenças mais ou menos estáveis uma espécie de antídoto contra os malefícios da liquidez pós-moderna?”
Para ressaltar a importância da temática geral do grupo, ele cita estudos de um pesquisador que identificou, em 2012, a existência de cerca de 30 mil artigos sobre a influência da religiosidade/espiritualidade (R/E) na saúde em geral, com um incremento de sete novos artigos a cada dia.
A maioria dos estudos mostra que a R/E possui efeitos favoráveis nos desfechos em saúde, como melhor qualidade de vida, maior sobrevida, melhor saúde mental, maior preocupação com a própria saúde e menor prevalência de doenças em geral, comenta Zangari.
No entanto, ela também pode ter efeito negativo e estar associado a piores desfechos, como pior saúde mental e pensamentos punitivos, de acordo com vários estudos. Esses trabalhos indicam que “a identificação da forma com que o paciente utiliza sua R/E (positiva ou negativa) é essencial para a prática clínica do profissional de saúde”.
Ele lembra que várias associações médicas no Brasil e em outras países criaram seções sobre os efeitos da R/E na saúde diante de evidências de vários mecanismos fisiológicos, os quais ainda não são totalmente compreendidos. Comenta ainda que diversos centros universitários possuem grupos de pesquisa que investigam o tema, caso das Universidades Duke, Harvard e Johns Hopkins, nos EUA, e diversas escolas médicas internacionais trazem esse conteúdo em seu currículo (90% nos Estados Unidos e 59% no Reino Unido).
Para Zangari, a USP parece ainda não estar preparada para enfrentar tal desafio. “É notável a atual desarticulação entre seus docentes/pesquisadores claramente devotados ao estudo de sistemas de crenças. Se fizermos uma busca simples no Sistema Janus [gerencia matrículas em disciplinas de pós-graduação] da USP utilizando os termos ‘religião’, ‘religiosa’, ‘religioso’ e ‘crença’, encontraremos cerca de 60 disciplinas, ministradas por docentes de vários programas, departamentos e unidades. Ao que parece, esses docentes têm trabalhado de forma independente uns dos outros e, em sua maioria, raramente mantêm alguma comunicação entre si.”
Daí a necessidade, na opinião de Zangari, de uma ação para aproximar esses docentes e aqueles da USP e de fora dela que não ministram disciplinas nessas áreas, mas participaram ou tem interesse em participar de pesquisas nesse campo.
Boa parte do núcleo do Ci.CRESS é constituída pelos docentes e pesquisadores vinculados ao InterPsi e ao LabPsiRel. Os demais são integrantes de outras unidades da USP (Faculdade de Medicina, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Instituto de Matemática e Estatística) e da PUC-SP, Uninter, Unif e IFCE. Há também a participação de colaboradores da USP, UFPR, PUC-SP, UFJF, Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, Universidade da Virgínia (EUA), Universidade Católica de Brasília, PUC-PR e UFU.
O grupo realiza reuniões mensais para discutir os avanços dos estudos e para gestar ideias e estratégias para a constituição do Centro Interunidades Ciência, Crença, Sentido e Saúde na USP, além de tratar da necessidade e exequibilidade de uma pós-graduação na área.
São previstos seminários (constituídos de conferências mensais) em cada um dos quatro semestres do projeto. Os temas dos seminários são: “O Que já Sabemos”, “O Que É Premente Que Saibamos”, “O Que Temos de Fazer” e “Como Vamos Fazer”. No final do primeiro e do segundo anos serão realizados os Simpósios USP “Ciência, Crença, Sentido e Saúde”.
Ao término do projeto em 2022, o Ci.CRESS submeterá um dossiê sobre o desenvolvimento das discussões e encaminhamentos adotados para eventual publicação pela revista “Estudos Avançados”.
Foto: Pxhere