Mais Médicos
Relacionado
|
---|
Lançado pelo governo federal em julho com o objetivo de melhorar o atendimento básico à saúde do Sistema Unificado de Saúde (SUS), o Programa Mais Médicos vem gerando controvérsia. O principal alvo das críticas é a dispensa do Revalida (exame nacional de revalidação de diplomas estrangeiros) para médicos de fora que vão ocupar parte das 10 mil vagas criadas em lugares do país onde há carência de profissionais — caso das periferias das grandes cidades, de municípios em lugares remotos do interior e das regiões Norte e Nordeste.
Para ampliar e aprofundar as discussões sobre o programa, no dia 4 de setembro o Laboratório Sociedades Contemporâneas do IEA e a Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) promoveram o debate Mais Médicos. Coordenado e mediado por Milton de Arruda Martins, professor do Departamento de Clínica Médica da FMUSP, o encontro se concentrou em três questões principais: 1) O Brasil precisa de mais médicos? 2) por que os médicos não vão para o interior e para as periferias? 3) Para suprir uma emergência, vale a pena contratar médicos estrangeiros?
Participaram do debate Adib Jatene, diretor geral do Hospital do Coração (HCOR), professor aposentado da FMUSP, ex-ministro da Saúde e ex-secretário da Saúde do Estado de São Paulo; Cláudia Collucci, repórter especial do jornal "Folha de S.Paulo" especializada na área da saúde; Fernando Reinach, sócio da Fundo Pitanga e ex-professor da USP; Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP e conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde; e Paulo Saldiva, professor do Departamento de Patologia da FMUSP.
DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL
Os debatedores afirmaram que, de fato, há carência de médicos em muitos locais do Brasil, mas matizaram o problema, destacando que a distribuição desigual dos cerca de 400 mil profissionais atuantes no país é resultado de deficiências na infraestrutura de atendimento, más condições de trabalho e subfinanciamento do SUS.
Para ilustrar esse quadro, Martins apresentou alguns dados: no Brasil há 1,8 médicos por 1 mil habitantes, número abaixo da média das Américas, que é de 2,2 por 1 mil habitantes, e da Europa, que é de 3,3. Considerando apenas a realidade nacional, citou o caso da disparidade da média de médicos por 1 mil habitantes no Maranhão, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Enquanto no primeiro há 0,7 médicos por 1 mil habitantes, no segundo e no terceiro há em torno de 3 médicos por 1 mil habitantes.
Já Scheffer, que coordenou o estudo "Demografia Médica no Brasil", mencionou os casos da capital fluminense e da capital paulista, onde as desigualdades se revelam na carência de profissionais na rede pública: há 51 mil médicos atuando em São Paulo, mas a Prefeitura não consegue preencher 3 mil postos de trabalho, enquanto no Rio de Janeiro há 40 mil médicos, totalizando uma média de 6 profissionais por 1 mil habitantes, e mesmo assim "a saúde é um completo caos e faltam aproximadamente 2,3 mil médicos na rede municipal de saúde".
De acordo com o professor, esses dados revelam que as desigualdades manifestam-se de três formas: 1) geograficamente, como foi exemplificado, visto que o Sul e o Sudeste concentram duas vezes mais médicos que as outras regiões do país, distorção que se repete entre capitais e cidades do interior; 2) na relação público/privado, como também ficou claro nas estatísticas, pois apenas 60% dos médicos brasileiros trabalham no sistema público de saúde, de modo que usuários do sistema privado têm quatro vezes mais médicos à disposição que usuários do SUS; 3) qualitativamente, considerando-se que o nível de qualidade das faculdades de medicina é heterogêneo.
ALÉM DOS MÉDICOS
Collucci, por outro lado, ampliou o foco do debate ao comentar que a falta de médicos não é exclusividade do Brasil e afeta, também, países desenvolvidos, como os Estados Unidos e nações europeias. De acordo com ela, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que nos próximos 10 anos haverá um déficit de 1 milhão de médicos no mundo.
Ainda contextualizando a questão no cenário global, a jornalista destacou a importância de outros profissionais da área. "Precisamos de mais médicos e de uma melhor distribuição, mas também é interessante discutir papel de outros profissionais, pois nos lugares onde faltam médicos, falta tudo: enfermeiros, dentistas, agentes da saúde. Em outros países, o trabalho da enfermeira é mais valorizado que aqui".
Martins retornou a esse ponto ao dizer que não há saúde sem médicos, mas também não há saúde só com médicos. "A assistência à saúde é um trabalho em equipe e o programa vem desviando o foco do que interessa: discutir quais são as soluções para o SUS, as quais exigem médicos, outros profissionais igualmente importantes e financiamento."
FINANCIAMENTO
"O problema da quantidade de médicos existe, mas não é o principal", frisou Jatene, destacando que a saída para melhorar a saúde pública no Brasil não é trazer mais médicos, mas rever a forma de financiamento do sistema público de saúde e fazê-lo funcionar direito, expandindo o Programa de Saúde da Família.
A questão do financiamento também foi levantada por Scheffer, para quem "a falta de médicos é um sintoma da não efetivação do SUS". De acordo com ele, o "subfinanciamento crônico" do sistema público é agravado pelo aumento dos subsídios públicos ao mercado privado saúde. Saldiva seguiu na mesma direção ao afirmar que "a saúde está passando por um processo de privatização branca, assim como aconteceu com a educação e a segurança".
QUALIDADE
Embora tenha ressaltado a insuficiência e má distribuição de médicos no Brasil, Martins frisou que esse problema será progressivamente corrigido em função da queda na taxa de crescimento populacional e da abertura de novos cursos de medicina no país. Segundo o professor, em menos de dez anos houve um aumento de 50 mil para 110 mil graduandos, o que representa quase 1/3 dos profissionais em exercício.
Jatene também chamou atenção para o crescimento do número de cursos de medicina e ressaltou que, diante disso, é preciso concentrar esforços na reforma do ensino médico, que deve deixar de ser guiado pelas especialidades, de forma a garantir uma visão mais global do atendimento à saúde. Por isso, advertiu, a reestruturação e avaliação das escolas de medicina precisa ter prioridade. Salvida, de mesma forma, disse que "o currículo médico no país é absolutamente defasado em relação à realidade brasileira, pois deveria estar baseado numa maior exposição à saúde primária".
Mas quem tratou do tema da qualificação dos médicos de forma mais aprofundada foi Reinach. Segundo o ex-professor da USP, nos últimos anos o Brasil vem estruturando um sistema para qualificar esses profissionais, que envolve uma série de mecanismos: o controle de qualidade das faculdades de medicina; o fortalecimento dos conselhos médicos; a exigência da Revalida; e negociações para a instituição de uma prova, nos moldes do exame da OAB, para avaliar os médicos recém-graduados e de outra para requalificar médicos já formados.
Reinach afirmou que, tais instrumentos, ainda em fase de amadurecimento ou discussão, foram deslegitimados pelo programa na medida em que houve dispensa da Revalida e que os conselhos de medicina foram obrigados a dar o registro profissional para os médicos estrangeiros. "O problema não é trazer médicos de Cuba, mas a forma como isso vem sendo feito. Para viabilizar o programa, o governo está destruindo um mecanismo institucional ainda incipiente, mas que iria garantir a qualificação dos futuros médicos".
POLARIZAÇÃO DO DEBATE
Para Scheffer, a polarização do debate em torno do programa tem dificultado as discussões sobre os desafios do sistema de saúde brasileiro. De um lado, estariam as representações dos médicos, que, numa reação exagerada movida por um "corporativismo cego", teriam definido como estratégia "a rejeição total, o não diálogo". De outro, um governo que, por interesses políticos, teria lançado o programa com "lastros de improviso, pressa e euforia", adotando uma linguagem mais próxima do marketing que da saúde pública.
De acordo com o professor, o lançamento do programa, da forma como foi feito, parece ser uma resposta apressada a um momento histórico marcado por dois fatos principais: 1) a saúde, tanto pública quanto privada, nunca foi tão mal avaliada no Brasil; e 2) as manifestações de junho, que foram acompanhadas por queixas e reivindicações em relação à área da saúde.
Essa pressa, segundo Saldiva, resulta da dissociação entre dois tempos: "o tempo político, que geralmente é curto, e o tempo de fazer direito". Para ele, o tempo político, que associa ao lançamento do Mais Médicos, leva à perda de oportunidades de resolver problemas por implicar a opção por soluções paliativas.