Ensino Superior e Universidades
Os desafios à interdisciplinaridade
O sociólogo Peter Weingart. |
Interdisciplinaridade e a Nova Governança das Universidades foi o tema da conferência que o sociólogo Peter Weingart, professor da Universidade de Bielefeld, Alemanha, realizou no dia 28 de julho, às 15h30, na Sala de Eventos do IEA.
Weingart focou sua abordagem nas formas profundamente institucionalizadas de produção do conhecimento e nas estruturas organizacionais rígidas da universidades, as quais são fechadas em departamentos e faculdades.
Conselheiro e ex-diretor do Centro de Pesquisa Interdisciplinar (ZiF, na sigla em alemão) da Universidade de Bielefeld, Alemanha, Weingart disse que a reestruturação organizacional, que já vem ocorrendo em algumas universidades estrangeiras, é condição essencial para que se concretize o modelo interdisciplinar. O ZiF é um dos parceiros do IEA na rede Ubias (University-Based Institutes for Advanced Study).
Além disso, a interdisciplinaridade exige uma sólida base epistemológica: “Sem as boas razões internas ao desenvolvimento da ciência e sem a disposição de tratar de problemas externos às áreas específicas, ela não é bem-sucedida”, disse.
Weingart disse que no período em que dirigiu o ZiF (1989 a 1994), o centro classificava as relações interdisciplinares em dois tipos: as pequenas, quando, por exemplo, matemáticos e físicos se unem, pois “eles conseguem se entender com certa facilidade”; e as grandes, como no caso em que um biólogo e um sociólogo discutem os fundamentos biológicos da cultura, tendo de superar diferenças maiores entre as disciplinas.
Ele vê também duas maneiras na forma como a interdisciplinaridade se realiza. Uma delas é a combinação de disciplinas, resultando em uma área como biofísica. “No entanto, não leva muito tempo para que a nova área se torne uma especialização, com a mesma dinâmica e formato tradicionais das disciplinas: proteção ‘territorial’, demarcação em relação a áreas externas e internalização da comunicação, caracterizada pela interação entre pares com ideias e posturas semelhantes.”
A outra forma de concretização da interdisciplinaridade é “a orientada por uma demanda externa às disciplinas, geralmente política”. Um exemplo disso é a pesquisa ambiental, segundo Weigart, que “até hoje não teve êxito em se tornar uma disciplina, pois é constituída por um conglomerado de diferentes disciplinas que cooperam entre si”.
De acordo com o sociólogo, esses dois tipos de interdisciplinaridade podem enfrentar resistências nas universidades, pois enfrentam departamentos bem estabelecidos e com os quais competem por verbas. “Os departamentos são grupos de interesse e, evidentemente, os mais fortes alegam que apenas eles são capazes de julgar a qualidade e a competência dos pesquisadores ingressantes nas unidades e institutos das universidades.”
Um exemplo mais radical citado por Weingart é o da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos: “Como a universidade não consegue alcançar o grupo de elite das instituições americanas, o reitor Michael Crow resolveu seguir um caminho diferente e adotou uma estratégia que ele chama de ‘empreendedorismo científico’: dissolveu todos os departamentos e criou uma mistura entre as áreas completamente nova, interdisciplinar”.
Mesmo com todas as transformações em direção a interdisciplinaridade, ele alerta que “a democratização da ciência não é algo que vai abolir a especialização que temos visto ocorrer nos últimos dois séculos.
“A evolução da ciência depende de uma especialização cada vez maior, de uma penetração cada vez maior, de um aprofundamento em terrenos não explorados, mas a pergunta que devemos fazer é se as disciplinas no modelo como elas foram criadas no início do século 19 marcam o fim de sua história ou se é possível que algo diferente as substitua.”
Sobre os institutos avançados das universidades, Weingart disse que há vários entendimentos sobre o que os IEAs devem fazer e um deles é de que deve se basear na reunião de mentes brilhantes. Para ele, na atualidade ninguém acredita mais que isso seja suficiente: “É ótimo ter essas pessoas trabalhando num mesmo local, mas isso funciona até certo ponto, além de ser uma solução luxuosa, só para quem têm uma verba elevada; se não tiver esse dinheiro, o melhor é pensar em soluções sistêmicas”.
O diretor do Instituto de Biociências (IB) da USP, Gilberto Fernando Xavier, perguntou a Weingart se a dificuldade para o estabelecimento de grupos interdisciplinares num ambiente competitivo não seria mais um problema sociológico do que organizacional, “pois para a criação de um grupo assim é preciso haver confiança e uma atitude cooperativa entre as pessoas”.
Weingart respondeu que essa dificuldade não é tanto um problema sociológico, mas sim psicológico: “Muitos acadêmicos têm medo e buscam segurança; pessoas assim não são bons parceiros nesses grupos, que exigem pesquisadores resilientes o suficiente para sentar com alguém e fazer perguntas bobas, por saberem que as perguntas bobas precisam ser feitas, que eles precisam aprender, começar do zero”.
Segundo Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências (IB), a USP possui os mecanismos para isso mas há o problema da linguagem entre diferentes áreas e a consequente necessidade de “tradutores” (não pessoas, mas mecanismos de facilitação do entendimento).
Weingart disse que a especialização é a base de referência e isso implica em linguagens altamente especializadas: “Seria impossível usar ‘tradutores’ que tornassem cada disciplina traduzível; o melhor seria que diferentes disciplinas atacassem um problema específico com a ajuda de um ‘tradutor””. Buckeridge citou como exemplo desse trabalho de “tradução” os livros de divulgação científica que muitos cientistas americanos e britânicos produzem. Weingart concordou que esse é um dos mecanismos possíveis.
Na opinião do sociólogo, há uma tendência de crescimento dos currículos de todas as disciplinas, por isso “precisamos de um processo constante de repensar os currículos e decidir que competências são absolutamente cruciais e quais devem ser abandonadas".
Durante o debate, a diretora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, Maria Cristina Motta de Toledo, que assistia o evento pela internet, encaminhou convite a Weingart para que numa próxima visita a São Paulo conhecesse a escola, que possui caráter interdisciplinar, não departamental, com cursos de graduação baseados em temas e atividades integrados, com o primeiro ano letivo funcionando como ciclo básico comum a todos os cursos.
O Futuro das Universidades
Reitores debatem as mudanças e novas atribuições previstas para as universidades
John Heath, Naomar de Almeida Filho, Marco Antonio Zago, Sabine Righetti, Carlos Vogt e Klaus Capelle |
Reitores, ex-reitores e expoentes da pesquisa sobre educação superior se reuniram no dia 24 de abril de 2015 na sala do Conselho Universitário da USP para debate O Futuro das Universidades, realizado como parte da programação do eixo temático Universidade, da Intercontinental Academia (ICA).
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Os expositores foram John Heath, pró-reitor de Patrimônio e Infraestrutura da University of Birmingham, Reino Unido; Naomar de Almeida Filho, reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB); Luiz Bevilacqua, ex-reitor da Universidade Federal do ABC (UFABC); Klaus Capelle, reitor da UFABC; Carlos Vogt, presidente da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp); e Marco Antônio Zago, reitor da USP.
Os debatedores do encontro foram Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e Marcelo Knobel, do Instituto de Física da Universidade de Campinas (Unicamp). A moderação foi da jornalista Sabine Righetti, especializada em política científica e tecnológica e jornalismo científico.
Algumas das conclusões apontadas no debate indicam que as universidades do futuro serão variadas em suas ênfases de atuação, com algumas mais dedicadas ao ensino e outras, mais à pesquisa. A interdisciplinaridade será o paradigma de ensino e pesquisa. Os professores não serão transmissores de conhecimento, mas tutores a orientar os estudantes no aprendizado. O uso das tecnologias de informação e comunicação será intenso. Haverá maior dedicação aos inúmeros problemas enfrentados pela sociedade.
Para John Heath, as tecnologias digitais, já acessíveis a parte considerável da população mundial, terão cada vez mais impacto nas formas de aprendizagem, possibilitando uma educação 24/7 (24 horas, sete dias por semana), além de afetarem significativamente a maneira de fazer pesquisa.
Ele informou que Birmingham já ministra aulas online com interação de alunos do Reino Unido, Estados Unidos, Hong Kong e Canadá, “numa experiência que os alunos consideram transformadora”.
Para Naomar de Almeida Filho, deve-se pensar em futuros possíveis para as universidades, pois ele não acredita em um modelo único para elas. Disse que disse que é fundamental que a universidade seja descolonizada e seja recriada como vetor efetivo capaz de produzir transformação na região em que está inserida.
Almeida Filho considera que a desigualdade no Brasil é alimentada pela perversão da educação. “Dada a característica de taxação regressiva do sistema tributário, o Estado é financiado por quem tem menos benefícios. Assim, uma minoria privilegiada é subvencionada no ensino fundamental e médio e consegue ingressar nas instituições públicas de ensino superior, que são as de melhor qualidade”.
Bevilacqua também não acredita em um modelo único, mas sim em alguns princípios norteadores das transformações: a universidade deve ser sobretudo um lugar onde o aprender prevaleça diante do ensinar; a pesquisa deve ser feita para o avanço do conhecimento, não para o enriquecimento do currículo dos pesquisadores, invertendo-se assim o modelo atual, que privilegia a quantidade em detrimento da qualidade; a interdisciplinaridade deve ser vista não como causa, mas como consequência da convergência de disciplinas.
Klaus Capelle preferiu falar do futuro partindo da história das universidades, relacionando as atribuições que foram conferidas a ela no decorrer do tempo.
Ele lembrou que as raízes da universidade estão nas academias dos filósofos da antiguidade grega, passando pelas instituições controladas pela Igreja na Idade Média. Essas instituições dedicavam-se exclusivamente ao ensino. “A mudança significativa aconteceu há pouco mais de 200 anos, quando Alexander Von Humboldt, na Alemanha, propôs o modelo de universidade autônoma e com a incorporação da pesquisa.”
Carlos Vogt disse que sociedade passou de uma cultura clássica de formação para outra de informação e constante transformação. “Mesmo que ainda não se dê conta, a universidade já está vivendo o futuro, o processo de permanente transformação”. Esse processo baseia-se, segundo ele, na “prancha” (mencionada antes por Bevilacqua) das tecnologias de informação e comunicação.
Ele mencionou as principais características da Univesp como exemplo do uso das novas tecnologias, que permitem que seus 3.500 ingressantes anuais façam um dos dois cursos de engenharia (produção e computação) ou uma das quatro licenciaturas (matemática, física, química e biologia) para a formação de professores de ensino médio.
Para Zago, continuam válidas as missões da universidade definidas pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset (1885-1955) e pelo pensador alemão Karl Jaspers (1983-1969).
Ele citou o comentário feito por Ortega y Gasset no ensaio “Misión de la Universidad”, de 1929, sobre as finalidades da instituição: “Transmissão de cultura, ensino dedicado às profissões liberais, investigação científica e formação de novos homens de ciência”.
Zago lembrou as missões de ensino, pesquisa e extensão universitária regidas pelo Decreto nº 6.283, de 1934.
O Futuro das Universidades
Ensino Superior deve se preocupar em aguçar mentes, diz ministro da Educação
Workshop "A Universidade do Futuro" |
O ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, membro do comitê científico do IEA para a ICA e coordenador do Grupo de Pesquisa O Futuro nos Interpela, do Instituto, também participou do debate O Futuro das Universidades, no dia 24 de abril de 2015. Ele falou aos participantes da Intercontinental Academia (ICA) que a universidade do futuro deve abranger mais que a busca de uma carreira específica e se preocupar com uma formação que amplie e diversifique a visão de mundo das pessoas.
"É preciso pensar um sistema de ensino superior mais preocupado em aguçar mentes para compreender melhor a realidade", disse.
Para isto ocorrer, temos que mudar nossos currículos para oferecer cursos universitários mais amplos. “O primeiro passo para isso é renovar as agendas das universidades e prepará-las para as transformações que estão em curso, dentre as quais , a redução das desigualdades sociais e a elevação da longevidade”.
Janine afirmou que caminhamos para um mundo cada vez mais igualitário, no qual a desigualdade social não desaparecerá, mas perderá suas antigas justificativas e conviverá com um avanço significativo dos direitos dos antigos excluídos.
"Analisando os últimos 250 anos, é possível notar que a igualdade de fato aumentou em termos de justiça social, liberdade e diversidade, com maior inclusão das mulheres e de outros grupos historicamente discriminados", destacou.
Nesse sentido, lembrou as transformações na pirâmide social brasileira. "Em cinco anos, 25% da população em situação de extrema pobreza ingressou na classe C, passando para o status de classe média baixa", disse.
Na opinião do ministro, o Brasil já segue em direção ao amplo acesso ao ensino superior, embora ainda esteja longe do objetivo final. Ele citou alguns dados para embasar seu ponto de vista: em 1968, quando ingressou no curso de filosofia, as universidades contavam com 100 mil alunos. Em 2003, o número era de pouco mais que 3 milhões, e hoje já ultrapassou, com mais de 7 milhões, os 20% da população na faixa dos 20 anos. "E quando um país atinge os 15%, deixa de ser elitista em termos de acesso ao ensino superior. Atualmente, estamos na categoria dos já não elitistas. Falta muito, mas avançamos", observou.
As transformações sociais no Brasil também estão relacionadas ao aumento da expectativa de vida da população. Nesse novo mundo, as opções que uma pessoa fizer aos 20 anos de idade não pode determinar os resultados que terá aos 60 anos. Sendo assim, as pessoas vão mudar sua identidade várias vezes ao longo da vida, o que inclui mudar de profissão e de emprego.
Esse novo cenário impõe um sistema universitário mais flexível, capaz de preparar os estudantes para transitar de uma área para outra, sem que isso seja visto como sinal de fracasso ou imaturidade. Ele questionou a mentalidade corrente que vê a desistência de um curso universitário como uma falha pessoal. "Por que? A vida continua. É preciso aceitar a ideia de mudança. O diploma universitário não pode ditar minha vida futura e não precisa ser um marco profissional definitivo."
"Precisamos ser poliglotas culturais e científicos: precisamos conhecer as diferentes áreas e disciplinas e saber como integrá-las", ressaltou.
Além da conferência com Janine, a programação da ICA incluiu mais duas sessões sobre o eixo temático "Universidade": uma master class sobre os 80 anos da USP com José Goldemberg, ex-reitor da Universidade, que aconteceu no dia 20; e um debate com reitores e especialistas em educação sobre o futuro da universidade, realizado na tarde desta sexta-feira.
Conferência
Cristovam Buarque fala sobre a pós-universidade
"Precisando mudar, mas impedida de fazê-lo, a universidade será provavelmente substituída por outro tipo de instituição, que preencherá o papel de vanguarda do saber, desempenhado por ela nos últimos mil anos", vaticina Cristovam Buarque, senador (PDT-DF), ex-ministro da Educação e ex-reitor da Universidade de Brasília. No dia 15 de maio de 2014, às 9h, Buarque dará a conferência "A Pós-Universidade".
Cristovam Buarque |
Buarque tem esperança que a universidade evolua, sem necessidade de outra instituição, a pós-universidade: "Diversas universidades estão fazendo essa evolução, isoladamente. O que vai definir se a universidade evoluirá ou se a pós-universidade tomará seu lugar vai depender do resultado do processo entre as universidades-evolucionistas, que se transformam, e as universidades-convento, que reagem à mudança". A referência aos conventos deve-se ao monopólio que eles detinham do ensino antes de serem suplantados pelas universidades, pois "não foram capazes de se ajustar e se transformar". Para Buarque, as razões que exigem a transformação da universidade são: a velocidade com que as idéias evoluem em cada área e na criação e superação de outras; a revolução da teleinformática, propiciando meios nunca antes imaginados para a disseminação do conhecimento, sem necessidade de intermediação da universidade; o isolamento da universidade em relação aos mais pobres; a globalização, com a interligação internacional instantânea da economia, saber e cultura. No seu entender, caso as universidades sejam suplantadas pela pós-universidade, esta será uma instituição em rede eletrônica, sem endereço, sem nacionalidade, da qual todos poderão participar pelo prazo que lhes for conveniente, mas não terão direito a diploma, pois no ano seguinte o saber adquirido já terá sido superado. O diálogo substituirá as aulas, não havendo fronteira nítida entre professores e alunos. Haverá dirigentes, mas que não poderão exercer um poder hegemônico, sendo também vedada a predominância de uma área sobre outra. Buarque também prevê que será abandonada a divisão do saber em disciplinas e não haverá neutralidade na geração do conhecimento, que deverá ser pautado pelo controle ético da pesquisa e por um método capaz de casar racionalidade com valores morais. O senador avalia que a universidade se isola de seu entorno, ao mesmo tempo que interage intelectualmente cada vez mais com o mundo. Se continuar assim, "a universidade perder-se-á eticamente". Caberá à pós-universidade "lutar para que o destino da humanidade não seja a ruptura, e sim o encontro". Considera também que ela será integrada não só por centros específicos de ensino e pesquisa, mas também por todos os outros ambientes que geram saber: indústrias, consultorias, laboratórios, escritórios domésticos. Quanto ao financiamento, Buarque acredita que será levada em conta a divisão entre os cursos de interesse basicamente público — como a formação de professores para a educação básica — e aqueles de interesse basicamente privado — como os voltados apenas para a promoção pessoal do aluno. Não havendo recursos estatais para financiamento de todos os cursos, os de interesse público serão pagos pelo Estado, mesmo em instituições particulares, enquanto os de interesse privado terão cobrança de anuidades, mesmo em instituições estatais. Buarque é engenheiro mecânico formado pela Universidade Federal de Pernambuco e doutor em economia pela Sorbonne, França. É professor da Universidade de Brasília desde 1979. Elegeu-se senador pelo PT em 2002 e em setembro de 2005 filiou-se ao PDT. Publicou mais de 20 livros.
IEA debate o processo eleitoral para reitor da USP
Luiz Nunes de Oliveira (à esq.) e Ciro Teixeira Correia debatem o processo eleitoral da USP. |
A busca de alternativas ao atual sistema de escolha de dirigentes da USP deu o tom da mesa-redonda IEA Debate o Processo Eleitoral da USP, realizada no dia 3 de setembro de 2013. O evento integrou a programação da Semana de Debates sobre o Sistema de Eleição dos Dirigentes da USP, promovida pela Reitoria no período de 2 a 6 de setembro.
A eleição para reitor era dividida em dois turnos e incluía a controversa formulação de uma lista tríplice de candidatos por um colegiado restrito e a escolha de um deles pelo governador do Estado. O sistema é considerado pouco democrático por segmentos significativos de docentes, estudantes e funcionários, que há décadas vêm reivindicando mudanças no processo.
No encontro, duas propostas de alteração do sistema foram colocadas em discussão: uma apresentada por Luiz Nunes Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e representante dos professores titulares no Conselho Universitário (Co) da USP; e outra da Associação dos Docentes da USP (Adusp), explicada pelo presidente da entidade, Ciro Teixeira Correia, do Instituto de Geociências (IGc).
Os debatedores foram os professores Francisco César de Sá Barreto (UFMG), Lisete Arelaro (Faculdade de Educação), Renato Janine Ribeiro (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e IEA) e Sergio Adorno (FFLCH e IEA) e o jornalista Paulo Saldaña ("O Estado de S.Paulo").
VOTAÇÃO PARITÁRIA
A proposta da Adusp prevê o fim do primeiro turno das eleições, com extinção da Assembleia Universitária — composta pelo Conselho Universitário (Co), Conselhos Centrais, Congregações das Unidades e Conselhos Deliberativos dos Museus e dos Institutos Especializados —, que elabora a lista óctupla de indicados. No turno único, o Colégio Eleitoral do atual segundo turno, do qual não participam as Congregações, continuaria responsável pela lista tríplice, sendo um dos candidatos a figurar nesta lista escolhido por uma consulta paritária envolvendo docentes, estudantes e funcionários.
Essa consulta, por sua vez, seguiria o princípio da proporcionalidade, de modo que os votos de docentes, alunos e funcionários teriam pesos diferenciados determinados de acordo com a proporção de cada uma dessas três categorias na composição da comunidade USP.
Segundo Correia, a proposta da Adusp busca resgatar a "proposta histórica" da década de 80, formulada por docentes, estudantes e funcionários, que sugeria as eleições diretas e paritárias, na qual os três segmentos da comunidade USP teriam igual peso na escolha de dirigentes.
OBSTÁCULOS
Para o presidente da Adusp, não seria possível implementar o sistema de eleições diretas no momento porque a legislação estadual prevê a nomeação do reitor pelo governador a partir da lista tríplice. "Diante disso, deliberamos por uma proposta muito aquém da desejada, mas que não esbarra em impedimentos legais e pode, portanto, ser colocada em prática imediatamente."
Embora não julgue essa proposta a ideal, Correia considera que o candidato incluído na lista tríplice pela votação paritária teria o diferencial da legitimidade e da representatividade, ao contrário dos dois candidatos indicados pelo Colégio Eleitoral, cujos membros representam apenas 0,3% da comunidade uspiana. "Se optasse por contrariar a vontade da maioria, o governador teria que arcar com as implicações políticas dessa decisão", frisou.
Além disso, Correia acredita que o sistema proposto pela Adusp possibilitaria uma transição para uma estrutura de poder que, a seu ver, seria mais sintonizada com um projeto de universidade. Para ele, a USP caracteriza-se como uma instituição reservada à elite, e não como uma instituição que precisa servir à sociedade como um todo: "A USP precisa de uma estrutura de poder compatível com uma universidade pública, gratuita, democrática e transparente, bem como autônoma no âmbito administrativo, acadêmico, pedagógico e científico e no gerenciamento de insumos e recursos".
PAPEL DAS CONGREGAÇÕES
Segundo Nunes, a proposta que defende — correção do desequilíbrio na representação das congregações no primeiro turno e eliminação do segundo turno — visa a dois objetivos: fomentar a discussão construtiva e tornar o processo eleitoral mais atraente para os melhores candidatos. "Precisamos atrair pesquisadores que não se candidatam por receio de interromper a carreira acadêmica", disse, destacando que esse segundo objetivo deveria ser uma preocupação na escolha de dirigentes de todos os níveis e, portanto, permear os diversos processos eleitorais da Universidade.
O caminho para alcançar tanto essa atratividade quanto esse debate construtivo, de acordo com ele, é ampliar a participação das Congregações das Unidades no processo eleitoral. "Isso facilitaria a comunicação e ajudaria a convencer os pesquisadores a se candidatar, pois na campanha seria preciso falar apenas para as Congregações, dispensando os comícios para um corpo eleitoral amplo."
Para Nunes, a ampliação do número de votantes se faz necessária porque o Colégio Eleitoral, ou "coleginho", como ele o chama, não garante a representatividade por ser muito restrito e sujeito ao controle da Reitoria, de modo que o reitor geralmente consegue eleger seu sucessor. Explicou que, caso a proposta fosse aprovada agora, com a inclusão dos suplentes de Congregações com menos de 50 representantes, haveria uma ampliação significativa do Colégio, que passaria a contar com 1.900 docentes, 180 estudantes e 90 funcionários.
Ciclo Ética e Universidade
Campus da USP no Butantã. |
Ética e Universidade foi o nome do ciclo realizado pela Comissão de Ética da USP e pelo IEA com o objetivo de debater o comportamento acadêmico e encaminhar contribuições para a definição de conceitos de conduta ética no âmbito da USP. Os debates aconteceram nos dias 8 e 28 de novembro de 2012 e 10 de abril de 2013 e versaram sobre temas como segurança, plágio e sociabilidade.
Segurança e Privacidade foi o tema da primeira mesa-redonda, que contou com a presença dos professores Sérgio Adorno, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Leandro Pique Carneiro, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, e do coronel Glauco Carvalho, da Polícia Militar do Estado de São Paulo. A professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, diretora do IRI, moderou o debate.
O convênio entre a USP e a Polícia Militar firmado em setembro de 2011 pautou as discussões, que buscaram aprofundar a questão do respeito às liberdades individuais e intensificação do policiamento no campus do Butantã. (Vídeo | Fotos | Notícia).
Sérgio Adorno, Leandro Piquet Carneiro, Maria Hermínia Tavares de Almeida e Glauco Carvalho |
Segundo Adorno, o problema da invasão da privacidade em nome da segurança envolve o dilema entre a necessidade de, por um lado, vigiar cada vez mais e, por outro, de proteger o cidadão contra um poder que pode se mostrar abusivo e violar direitos.
Já Carvalho afirmou que a resistência da comunidade uspiana à atuação da PM decorre de uma questão geracional: "Algumas gerações ainda vinculam a figura da PM ao regime militar. Mas a instituição mudou radicalmente nos últimos anos. Deixou de ser uma tropa do exército para se tornar uma tropa de policiamento".
Plágio nas Ciências e Humanidades
Fabricação, Falsificação e Plágio nas Ciências e Humanidades, realizado no dia 28 de novembro de 2012, foi o tem a da segunda mesa-redonda do Ciclo Ética e Universidade, organizado pela Comissão de Ética da USP e o IEA. (Vídeo | Fotos | Notícia)
O debate teve a participação dos professores Edson Watanabe (UFRJ), Sonia Maria Vasconcelos (UFRJ) e Marisa Russo Lecointre (Unifesp), com a moderação do professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Sonia Maria Ramos Vasconcelos, Edson Watanabe, Luiz Henrique Lopes dos Santos e Marisa Russo Lecointre |
A multiplicação das denúncias de má conduta científica talvez seja a maior sombra que paira sobre a comunidade acadêmica. Os casos vão desde práticas como fracionamento da produção, requentamento de artigos e falsas coautorias até desvios de extrema gravidade, como manipulação de resultados, alteração de dados e cópia de ideias, textos ou imagens sem a devida atribuição de autoria.
Sonia Maria tratou de um dos maiores tabus entre os pesquisadores: as retratações em revistas científicas, que se referem a artigos retirados da literatura científica devido a erros ou desvios éticos na condução ou no relato da pesquisa.
Marisa Russo tocou em outro ponto caro à comunidade acadêmica: a pressão pelo aumento da produtividade científica. Para ela, quando a política do publish or perish (publicar ou perecer) passou a nortear a oferta de financiamentos e a determinar o status dos pesquisadores, sobretudo a partir da década de 80, teve início o desastre das pesquisas, com o acirramento da corrida para elevar a quantidade de publicações.
A exposição de Watanabe concentrou-se no que ele considera ser a principal causa dos desvios éticos na ciência, sobretudo do plágio: a cultura da cola, que, deacordo com ele, começa nos colégios e se consolida nas universidades. "Quando a gente conversa com o plagiador, vemos que muitas vezes ele não sabe queestá fazendo algo errado, pois o plágio faz parte da cultura do ensino", disse.
Ao fazer um balanço do debate, Santos, moderador da mesa, disse que a responsabilidade do cientista é produzir conhecimento de boa fé, dentro dos métodos econdutas da ciência. Para ele, a ética profissional do cientista diz respeito a fazer o conhecimento avançar respeitando as normas da comunidade científica.
A ética e a sociabilidade
Sociabilidade e Ética na Universidade, o terceiro encontro do ciclo Ética e Universidade, iniciado em 2012, aconteceu no dia 10 de abril de 2013. Discutir os problemas que a sociedade enfrenta no trato das relações interpessoais, ou seja, na sociabilidade, e encontrar soluções consensuais dentro dos ambientes universitários, foi o foco dos debates.
Cícero Araújo, Sérgio Adorno e Yves de La Taille. |
A mesa-redonda teve a participação dos professores Cícero Araújo, do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH); Leopoldo Waizbort, do Departamento de Sociologia da FFLCH; Yves De La Taille, do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia; e Sérgio Adorno, diretor da FFLCH, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência e coordenador da Cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, sediada no IEA. O moderador do encontro foi o professor Renato de Figueiredo Jardim, diretor do Instituto de Física. (Vídeo | Fotos | Notícia)
A Defesa do Ensino Superior Público
Leia no Informativo IEA, Ano X, N. 50, março-abril de 1998, págs 4 e 5
Leia "A Presença da Universidade Pública"
Os Desafios do Ensino Superior no Brasil
Livro sobre ensino superior será lançado em 15 de maio de 2006
Assista ao Vídeo: |
O livro "Ensino Superior: Conceito & Dinâmica", co-edição IEA e Edusp, com apoio da Fapesp, será lançado em 15 de maio de 2006. A obra reúne as participações de 18 pesquisadores na Temática Semestral "Os Desafios do Ensino Superior no Brasil", realizada de novembro de 2004 a abril de 2005. O livro é composto dos seguintes textos:
. Prefácio — João Steiner e Gerhard Malnic
. Os Desafios do Ensino Superior no Brasil — Hernan Chaimovich
. A Universidade de São Paulo e a Questão Universitária no Brasil — Simon Schwartzman
. Pesquisa e Universidade — Carlos Henrique de Brito Cruz
. Eleições na Universidade — Jacques Marcovitch
. A Autonomia Universitária: Extensão e Limites — Eunice Durham
. Aspectos Jurídicos da Autonomia Universitária no Brasil — Nina Beatriz Stocco Ranieri
. Autonomia das Universidades Públicas — Roberto Leal Lobo e Silva Filho
. O Futuro da Pós-Graduação Brasileira — Francisco César de Sá Barreto
. Pós-Graduação: Egressos, Trabalho e Formação no País e no Exterior — Jacques Velloso
. Ensino de Massa: Do Artesanato à Revolução Industrial — Claudio de Moura Castro
. O Financiamento do Ensino Superior — Jacques Schwartzman
. Universidade:A Idéia e a História — Franklin Leopoldo e Silva
. Reminiscências sobre as Origens da USP — Antonio Candido
. O Futuro da Universidade Pública — Gerhard Malnic
. O que as Avaliações Permitem Avaliar — Otaviano Helene
. Avaliação Institucional de Universidade — Bernardete Gatti
. Diferenciação e Classificação das Instituições de Ensino Superior no Brasil — João Steiner
ARTIGO
O Futuro da Universidade Pública
Gerhard Malnic
Até a década dos 60, a grande maioria das universidades brasileiras era constituída pelas universidades públicas, estaduais e federais. As particulares, basicamente confessionais e filantrópicas, eram minoria. Hoje a maioria dos alunos (75 a 80%) estuda em faculdades particulares, mas boa parte da ciência brasileira continua a ser feita nas escolas públicas. A atual discussão sobre o papel e o futuro das universidades federais deve levar em conta essa realidade.
É reconhecido em todo o mundo que a função das universidades não é somente a formação de profissionais, mas também a criação de conhecimento, principalmente porque essa criação mantém os professores atualizados e capazes tanto de transmitir conhecimento quanto de dar uma verdadeira formação aos seus alunos. As condições necessárias para a criação de verdadeiras universidades, isto é, regime de tempo integral, pós-graduação, criação de infra-estrutura adequada para pesquisa (laboratórios, bibliotecas, biotérios, oficinas especializadas, apoio técnico) e perspectivas adequadas de progressão na carreira são encontradas e apoiadas mais amplamente nas universidades públicas.
Se quisermos manter universidades que mereçam esse nome temos que apoiar as universidades públicas em geral, tanto estaduais como federais. Mesmo que elas sejam caras de manter e responsáveis por só 20 a 30% da formação de profissionais de nível superior do País? Certamente, mesmo nessas condições, pois elas concentram setores exponenciais nas áreas de ciência e cultura e servirão para fecundar os demais setores, particularmente o ensino superior particular.
Mas não basta só se lamentar e cobrar mais apoio às universidades públicas. Há nelas algumas limitações e dificuldades que devem ser discutidas abertamente e combatidas com eficiência. Uma questão da maior importância para as universidades é a luta pela autonomia, não só acadêmica, mas também financeira. A vantagem de poder estabelecer uma política própria de gestão de pessoal, de salários, de equilíbrio entre gastos com pessoal, investimentos e manutenção é enorme.
A própria carreira acadêmica necessita de aperfeiçoamento federais. Atualmente , é comum que um novo docente seja contratado já com o doutorado completo, o que lhe dá o nível de professor adjunto nas federais, praticamente o nível terminal da carreira, pois o nível de professor titular é alcançado por poucos, pois depende de criação de cargos. Assim, a grande maioria de professores não tem praticamente oportunidade de progresso na carreira. Torna-se necessária a criação de um passo intermediário entre o atual professor adjunto e o titular.
Nosso sistema de pós-graduação tem sido elogiado quanto a sua eficiência, não só no País mas também no Exterior. Tem conseguido elevar acentuadamente a formação de mestres e doutores, que precisam ser utilizados tanto nas próprias universidades quanto nos centros de pesquisa - infelizmente ainda muito escassos - das indústrias. Portanto, o fortalecimento das universidades públicas é essencial para dar um sentido prático à pós-graduação, a fim de melhor aproveitar o excelente contingente humano que é formado. Reavaliações criteriosas e permanentes do corpo docente poderiam resultar inclusive na exclusão daqueles que não se adaptarem à proposta definida para a universidade pela sociedade, liberando assim novas vagas para jovens que melhor se adaptem ao projeto proposto.
Outro sistema essencial para a pesquisa nas Universidades e que pode ser considerado um sucesso parcial é o de apoio à ciência e tecnologia, que inclui tanto mecanismos federais, como o CNPq, a Capes e a Finep, como estaduais, incluindo aí as FAPs (Fundações de Amparo à Pesquisa dos Estados). Têm surgido críticas em relação a alguns aspectos do sistema. No entanto, ele tem se revelado melhor que qualquer outro e é utilizado em muitos países do primeiro mundo e da América Latina.
Malnic é professor titular de fisiologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe) e ex-diretor do ICB e do IEA.
Obs: Parte do artigo publicado no livro Ensino Superior: Conceito & Dinâmica
Conferência
Universidade: a Idéia e a História*
Franklin Leopoldo e Silva**
Num dos momentos fundadores da modernidade encontramos uma atitude iconoclasta: a crítica severa que Bacon faz de todos os ídolos enquanto cristalizações naturais, morais e culturais, figuras projetadas pelo homem e às quais ele julga dever se submeter. A separação entre ciência natural e teologia em Galileu, bem como a reivindicação da liberdade da razão e a recusa da tradição, em Descartes, representam a seqüência desse processo.
Tudo isso significa que, para o homem moderno, não existiria no passado nada que se pudesse entender como por si mesmo venerável, ou aquilo diante de que tivéssemos que nos inclinar em atitude de respeitosa aceitação. Isso supõe também que tal posição não é assumida gratuitamente: são os novos critérios de verdade que me alertam de que nada do que ocorreu no passado pode ser considerado intrinsecamente venerável. O peso dessa recusa é proporcional à grandiosidade da falta que ela instaura, isto é, do vazio que se segue a essa mudança radical dos eixos de equilíbrio do conhecimento e da ação. Por isso a recusa da tradição implica um trabalho gigantesco de construção de novos conteúdos de conhecimento, de novos critérios de ação e, sobretudo, da invenção de novos parâmetros orientadores dessa atividade. O projeto humanista moderno define-se na sua base pelo ideal de construção e autoconstrução a partir da liberdade.
Todavia, o passado é em geral mais complexo do que as interpretações imediatas que dele se fazem a partir do presente, ainda mais se tais interpretação forem orientadas pela vontade de afirmação do presente diante da tradição. Nessa situação, inevitavelmente exagerada, a oposição que se faz ao passado oculta as oposições internas deste mesmo passado que, se devidamente consideradas, nos impediriam de nivelá-lo para produzir uma visão uniforme e homogênea. Certamente o passado da modernidade não se configura como a continuidade pacífica de uma transmissão de conteúdos e formas de modo absolutamente inalterável. Isso seria impossível sob todos os aspectos: material, social, cultural, etc. Mas talvez toda mudança que se quer significativa exija que o presente construa uma visão que o oponha drasticamente ao passado, e assim seria natural que essa oposição fornecesse os critérios que deveriam prevalecer na diferenciação.
Quando nos voltamos para a história da universidade, para o seu passado, o objetivo é sempre a compreensão do presente. Mesmo no historiador profissional, que almeja uma visão a mais objetiva possível do passado, descomprometida com qualquer outra meta além do conhecimento, a atualidade, sendo sempre o lugar de onde fala e a partir de onde se dirige ao passado, não pode deixar de aparecer como critério orientador e, mesmo, de termo de medida da compreensão que se pretende alcançar. Isso está presente em todos os estudos sobre a universidade, desde os historicamente mais abrangentes até os mais pontuais, e a causa disso é simplesmente a impossibilidade de nos desligarmos do nosso presente.
E, no entanto, não há nada mais comum do que confundir, nas análises que se fazem da universidade, processo histórico e natureza dada, transitoriedade do tempo e natureza essencial da instituição. Isso não significa propriamente ignorar a relatividade histórica da universidade tal como a temos; todos provavelmente concordariam que ela é um produto histórico. Mas o que se deixa de relativizar é o percurso histórico que levou a um determinado perfil assumido pela instituição. Este, principalmente nos tempos atuais, é visto em suas linhas gerais como inevitável, natural e necessário. E assim, esbarramos na contradição existente entre a consideração de um processo histórico contingente e o advento de instituições e de organizações que necessariamente devem ser como são. E isso muitas vezes leva a confundir a idéia de universidade vigente com a idéia própria de universidade.
Sem aprofundar as causas desse fenômeno, creio que podemos apontar pelo menos uma de suas razões: a noção de progresso. Quando acreditamos que há um progresso contínuo da civilização, e que as mudanças em todos os aspectos da vida, inclusive no que concerne às instituições, é resultado natural desse progresso, somos levados a entender que a experiência do presente, na medida em que é resultado histórico de um processo que é ao mesmo tempo um progresso, está constituída pelas formas mais aprimoradas da vida individual, coletiva, social, cultural e política. Caso contrário, seria o próprio vetor de civilização que estaria posto em questão. Afinal, projetamos na construção humanista da civilização moderna algo muito semelhante àquela visão retrospectiva do passado, que mencionamos há pouco. Assim como víamos uma transmissão inalterada da tradição no passado, assim também julgamos que há um vetor único na construção moderna da civilização: o progresso, fruto da libertação da tradição, a qual já não estamos obrigados a repetir. Assim, é a invenção do novo que constitui o eixo da nossa história, e a sucessão das inovações se define como progresso. É comum ouvirmos dizer, por ex., que mesmo as crises nada mais são do que o parto que dá nascimento ao novo, continuando sempre a trajetória de progresso.
Talvez isso nos faça entender algumas tendências que atualmente procuram explicar o que se poderia chamar de "mal-estar da universidade", desde aquelas que buscam as razões do fenômeno até aquelas que vêem nele equívocos ou mesmo outras que simplesmente o negam. Concentremo-nos nestas últimas, até porque parece ser a atitude mais comum em nossos dias. Com efeito, muitos entendem que o diagnóstico desse mal-estar nada teria a ver com a realidade, mas seria antes um sintoma de veneração, no sentido que mencionamos há pouco. Algo como uma nostalgia de um certo caráter vetusto que a universidade teria perdido devido às relações que teve de estabelecer com a sociedade contemporânea. Em outros termos, passadismo, talvez a mágoa pela perda de um caráter igualmente nobre da atividade universitária e daqueles que a exercem. A partir disso se formaria então uma idéia de universidade, calcada no passado, por vezes até remoto, que se desejaria por força conservar, ignorando as mudanças históricas e os novos modos de inserção social da instituição. Haveria aí, portanto, uma falta de visão histórico-política que estaria por trás do "corporativismo", cuja raiz seria algo como uma superestimativa do passado que se expressaria numa certa recusa do presente. Assim, o diagnóstico do mal-estar seria simples conseqüência de corações nostálgicos aprisionados no interior de uma idéia fixa e a-histórica, de universidade.
O problema com que nos defrontamos para responder a essa censura, que na verdade é uma acusação, provém de que a única maneira de mostrar o seu caráter infundado seria exatamente debruçar-se sobre o passado e tentar compreender, historicamente, o que foi a universidade em outros tempos. Com em geral se considera que isso é inútil, a resposta que se encaminhe nesta direção será considerada inócua. E já sabemos a razão: como a história é sempre história do progresso, na história da universidade colheríamos no máximo informações eruditas de como se chegou à universidade fruto do progresso, e o resultado interessa muito mais do que o decurso histórico que o engendrou. Entretanto, se dedicássemos alguma atenção ao passado da universidade, olhando-o criticamente, não encontraríamos nada de vetusto, nem de enobrecedor, nem de demasiadamente conspícuo, isto é, não encontraríamos nada de uma elite corporativa que pairasse acima da sociedade e da história. O que vemos, de fato, é o mesmo que encontramos em todas as realidades humanas. A tentativa de criação, que passa por inumeráveis contradições, de um modo novo de construir o saber e os critérios de conduta social e histórica. E na realização desta tarefa, o confronto com a tradição, com o presente, com o poder, com as outras instituições e com todas as injunções e contingências que pesam sobre a teoria e a prática.
Se nos voltarmos para a recomposição da idéia de universidade na época moderna, no século XIX, por ex., veremos que nas concepções de Fichte, de Humboldt e de outros autores do período, persiste a tensão inerente à necessidade de compatibilizar a expansão indefinida da liberdade de pensar com um certo ordenamento de caráter político, jurídico e mesmo simplesmente escolar. O problema comum a todos os ideólogos do sistema universitário de então era o de delimitar e definir dentro de certos parâmetros e de acordo com a precisão possível, uma atividade que dependia tanto da total abertura de horizontes quanto de uma especificação que a qualificasse e determinasse o seu alcance e o seu valor. Não é por outro motivo que a construção de todos esses projetos de universidade se dá através da crítica do sistema existente, do ponto de vista interno, e da crítica das injunções que pesam sobre a instituição, mercê de sua necessária vinculação a outros poderes institucionais.
A universidade contemporânea não busca redefinir-se para fazer face às novas situações trazidas pela necessidade de situar-se na modernidade, e nas variadas facetas de sua dramaticidade. O que a universidade menos procura é redefinir-se; busca, isso sim, o meio mais adequado de aplicar a si mesma uma definição construída pelo tempo histórico e por um conjunto de idéias que se constitui pela exclusão de tudo aquilo que a universidade já instituiu e preservou como valor, ao longo de sua história. O procedimento pelo qual a universidade se redefine contemporaneamente coincide inteiramente com a sua adaptação às exigências do tempo histórico: mercado, tecnociência, organização eficaz e tecnicismo produtivista. A partir dessa pauta imposta de fora, a universidade busca refazer a sua identidade através de um processo de desinstitucionalização. Tudo o que a universidade precisa fazer é recusar o que tem sido para tornar-se o que o tempo histórico lhe impõe como um dever-ser. Nesse processo de desinstitucionalização se inscrevem vários fenômenos imediatamente presentes, tais como heteronomia (absorção de critérios extrínsecos como paradigmas do modo de ser, da organização e da gestão da universidade), a privatização (assimilação dos mecanismos neoliberais de destruição da esfera pública) e subordinação ao mercado (entronização de critérios ligados ao tecnocratismo economicista). Tais exemplos configuram o quadro da adaptação, que seria ao mesmo tempo o abandono do perfil institucional em prol do perfil organizacional.
Cabe perguntar se o eixo em torno do qual a universidade cultivou e manteve durante muito tempo, e desde as origens, seu equilíbrio instável, eixo de caráter ético, político, e mesmo lógico e cognitivo, não se define como estar sempre um pouco fora de seu tempo histórico, ao mesmo tempo enraizada nele, histórica e socialmente, mas também projetando-se para fora de seu tempo, no limite contradizendo-o, exatamente para desempenhar o seu mais importante papel, que certamente não é o de reiterar os interesses hegemônicos de seu tempo, engendrando as soluções conciliadoras por via de uma adaptação total, que, aliás, não deixaria de ser uma veneração do presente e uma venerável expectativa de futuro, mas sim o de criar as condições para que esses interesses e essa hegemonia sejam repensados como questões, e tornados temas relativos a um espaço político-institucional construído e mantido de acordo com um interesse fundamental: a liberdade da reflexão como critério ético da liberdade da ação conseqüente.
* Texto constituído de excertos da conferência "Universidade: a Idéia e a História", realizada por Franklin Leopoldo e Silva no dia 12 de abril de 2005, dentro do ciclo de seminários da Temática Semestral "Os Desafios do Ensino Superior no Brasil". A íntegra da conferência e demais apresentações feitas no ciclo serão publicadas no livro "Ensino Superior: Conceito & Dinâmica", co-edição Edusp e IEA, com apoio da Fapesp, a ser lançado em março de 2006.
** Franklin Leopoldo e Silva é professor titular do Departameto de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.