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Desafios do saneamento em SP e alternativas à privatização: por uma agenda de governança ambiental frente às mudanças climáticas

por admin - publicado 29/05/2024 13:40 - última modificação 25/06/2024 11:46

Autores: Victor Kanashiro e Pedro Roberto Jacobi

Victor Kanashiro[I] e Pedro Roberto Jacobi[II]

29 de maio de 2024

A universalização do saneamento básico é um dos principais desafios das metrópoles globais para a qualidade de vida, saúde pública e regeneração de rios, na cidade e no campo. O saneamento básico é um direito humano estabelecido pela ONU e garantido pela Constituição Brasileira, incluindo abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem.

No Estado de São Paulo, de acordo com dados do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS, 2022), 2.16 milhões de pessoas não têm acesso adequado à água, 4,9% da população estadual, e mais de 4.23 milhões não têm acesso a coleta de esgoto, 9,5% da população.

É fundamental que a sociedade paulista realize um diálogo amplo, transparente e aprofundado sobre o tema, ainda mais no contexto de mudanças climáticas, que tendem a aumentar a insegurança hídrica.

A privatização da Sabesp tem sido apresentada como única solução para a universalização do saneamento em São Paulo. No entanto, tanto as teorias contemporâneas sobre a governança ambiental, quanto uma análise de dados empíricos locais e de experiências internacionais levantam diversos pontos críticos que precisam ser considerados. O próprio Relatório elaborado pelo IFC (International Finance Corporation do Banco Mundial), encomendado pelo governo do estado de São Paulo para embasar a privatização, aponta uma série de riscos.

A sociedade civil organizada, por meio do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), apresentou ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) um pedido de ingresso como amicus curiae (amigo da corte) em ação que questiona a constitucionalidade da lei estadual que aprovou a privatização da Sabesp. A entidade aponta que a privatização coloca em risco o direito humano à água e que falta discussão sobre hipóteses de reversão da privatização, caso o modelo privatista não atenda seus deveres contratuais ou se demonstre inadequado.

A privatização falhou em experiências internacionais

Serviços de saneamento em importantes metrópoles globais, como Nova Iorque, Tóquio e Seul, são fornecidos principalmente por departamentos ou empresas públicas para garantir o saneamento como direito humano. Várias cidades globais que privatizaram seus serviços de água e esgoto no passado tiveram de realizar processos de reestatização/remunicipalização, casos de Paris, Berlim, Buenos Aires, Atlanta, Kuala Lumpur, entre pelo menos outros 180 municípios em 35 países (LOBINA et al., 2023)

Em Berlim, por exemplo, a reestatização ocorreu em 2013, como resultado do referendo popular de 2011, que comprovou a insatisfação popular com a prestadora.  De acordo com o relatório do IFC (2023), o governo municipal de Berlim rompeu o contrato de concessão 15 anos antes do prazo de 30 anos inicialmente previsto, e teve que indenizar a empresa privada em 1,3 bilhões de euros (7,2 bilhões de reais no câmbio atual). Já em Paris, a fraca regulação não conseguiu impedir os aumentos de tarifa da prestadora privada, que foram duas vezes maiores que a inflação no período de atuação. Por isso, em 2009, o governo não renovou o contrato, remunicipalizando o serviço já universalizado (IFC, 2023).

No Brasil, Manaus tem o abastecimento de água e esgotamento prestados por concessionária privada desde o ano 2000. No entanto, a cidade continua ocupando apenas a 83° posição entre as 100 maiores cidades do Brasil, ficando entre as 20 piores cidades nos últimos 10 anos do Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil (FREY e KONTOPP, 2023).

A SABESP já tem recursos financeiros e tecnológicos para a universalização do saneamento nos municípios que atende

A SABESP é a maior empresa de saneamento da América Latina e uma das 5 maiores do mundo. No Brasil, ela é responsável por cerca de 30% do investimento em saneamento básico em todo o país, fornecendo água, coleta e tratamento de esgoto para quase 30 milhões de pessoas em 375 municípios do Estado de São Paulo. É uma empresa de capital misto que já faz captação de investimentos privados desde 1994, e em 2023 teve lucro de mais de 3.5 bilhões de reais, um crescimento de 13% em relação a 2022.

O plano atual da Sabesp prevê investimentos de 56 bilhões de reais até 2033, incluindo a ampliação e melhoria do acesso à água, coleta e tratamento de esgoto, manutenção e renovação da infraestrutura para garantir a segurança hídrica. O governo do Estado de SP argumenta que a privatização vai aumentar em 10 bilhões de reais a proposta atual para adiantar a meta de universalização para 2029.

No entanto, o próprio relatório do IFC revela que a Sabesp já tem recursos suficientes para universalizar os serviços nos municípios em que atua. Ou seja, que os 10 bilhões de reais adicionais já poderiam ser investidos sem privatização.

A universalização do saneamento em SP não depende somente da Sabesp

A Sabesp atende atualmente 375 municípios dos 645 do Estado de São Paulo. Isto é, 58% das cidades paulistas não são  servidas por ela, mas por empresas municipais ou privadas. Isso quer dizer que quando o governo está prometendo universalizar o saneamento por meio da privatização, ele está se referindo apenas aos municípios já atendidos pela Sabesp, que já têm 98% de cobertura de abastecimento de água, 92% de coleta de esgoto e 83% de tratamento (Relatório de Sustentabilidade Sabesp, 2022), índices superiores às médias estaduais e nacionais.

Além disso, a universalização do saneamento em São Paulo não depende somente de recursos nem da prestadora, mas também de uma governança articulada com outras políticas públicas, como as de moradia, educação, cultura, saúde, infraestrutura e meio ambiente.

A maior parte da população sem acesso a água e esgotamento sanitário vive em áreas irregulares ou na zona rural.

Em áreas irregulares, a universalização do saneamento depende não somente da Sabesp, mas também de regularização fundiária e políticas habitacionais que garantam o direito à cidade e à moradia digna. No município de São Paulo, a Secretaria da Habitação estima que existam mais de 386,582 lotes em loteamentos irregulares, além de 400.000 domicílios em favelas. Na Região Metropolitana, de acordo com o estudo "Saneamento Básico em Áreas Irregulares", do Instituto Trata Brasil (2015), estima-se que cerca de 2,1 milhões de pessoas, 11% da população, vivam em áreas irregulares, onde os serviços públicos de saneamento são precários ou praticamente inexistentes.

O estudo, realizado em 12 municípios atendidos pela Sabesp, além de Campinas (Sanasa), revela que, em 77% deles, existe legislação proibitiva acerca da prestação de serviços de água e esgoto em áreas irregulares. A partir de entrevistas em comunidades, também indica que 32,8% da população oficialmente sem acesso utiliza ligações clandestinas, que acarretam grandes perdas de água, 22,2% se abastecem a partir de córregos e cachoeiras, e 20,6% por meio de poços.

Em relação às áreas rurais, não existem dados oficiais que tenham mapeado a situação do saneamento em propriedades e comunidades isoladas, em que é inviável conectar-se à rede de abastecimento e coleta de esgoto. De acordo com o censo de 2010, 1676.948 pessoas viviam na zona rural do Estado de São Paulo, correspondendo a 4% da população total.

Nessas regiões, é fundamental que haja uma política descentralizada tanto para medir com freqüência a qualidade e potabilidade da água, já que muitas propriedades não têm sistemas de saneamento rural adequados e também podem estar contaminadas por agrotóxicos, intensivamente utilizados nas lavouras paulistas. Quanto ao tratamento do esgoto, existem várias soluções baseadas na natureza de saneamento ecológico testadas com sucesso em contextos rurais, mas não há políticas públicas consolidadas que universalizem esses sistemas no campo paulista e brasileiro.

Outros municípios não atendidos pela Sabesp também serão afetados

A privatização afeta diretamente a governança das águas e segurança hídrica mesmo de municípios que não são atendidos pela SABESP.

O funcionamento do Sistema Produtor do Alto Tietê, por exemplo, apesar de administrado pelo DAEE, é parcialmente operado pela empresa, que desvia grandes quantidades de água do rio Tietê ainda em Biritiba-Mirim para a Barragem de Biritiba-Mirim, e depois para a Barragem do Rio Jundiaí e de Taiaçupeba para o abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo.

Uma pesquisa realizada pelo jornalista Geraldo Campos, no contexto do filme-documentário "Tietê: Águas Verdadeiras", direção de Rodrigo Campos (lançamento previsto para novembro), indica que mais da metade do volume de água do rio Tietê em Biritiba-Mirim tem sido desviado pela Sabesp para alimentar o Sistema Produtor do Alto Tietê. A portaria do DAEE n° 350 de 11 de fevereiro de 2014 autoriza a Sabesp captar até 9 m3/s dos rios Tietê e Biritiba-Mirim, através da Estação Elevatória de Biritiba. O documento também estipula que após a intervenção, deve ser respeitado o valor mínimo de 3 m3/s, medido pelo posto pluviométrico. No entanto, uma análise dos dados telemétricos do Portal dos Mananciais mostra que, em 2023,  em 190 dias do ano, essa vazão foi desrespeitada, estando abaixo do mínimo estabelecido. Em 2022, os dados são ainda piores, sendo a vazão desrespeitada em 294 dias.

Essa irregularidade na gestão e controle de vazão traz diversas consequências para a população de Mogi das Cruzes, bem como para todos os municípios cruzados pelo rio Tietê. O desvio das águas tem um forte impacto no fluxo e qualidade da água do rio que entra no município. Com a diminuição de volume, o rio perde a capacidade de diluir a poluição e, apesar de entrar relativamente limpo em Mogi, sai da cidade agonizando. Isso acontece por conta da poluição por agrotóxicos e falta de tratamento de esgoto, operado pela Prefeitura Municipal por meio da Semae, mas também pelo "roubo" de água que acontece ainda em Biritiba-Mirim.

Além disso, devido ao desvio, a água fica mais cara para a população mogiana. Enquanto o custo marginal da água produzida pela Semae é de apenas R$1,17, Mogi paga R$ 3,08 para comprar a água da Sabesp. Ou seja, o município gasta cerca de 45 milhões de reais por ano para importar água da Sabesp (SNIS, 2022), sendo que ele poderia ser autosuficiente.

Esses casos ilustram a complexidade da governança das águas, que transcendem os limites territoriais, físicos e político-administrativos, e convidam a sociedade paulista a um debate mais aprofundado sobre quais as mudanças na governança ambiental que São Paulo precisa e quer, para garantir a universalização, segurança hídrica e adaptação climática.

Os rios são provedores de diversos serviços ecossistêmicos para além do fornecimento de água. A privatização da Sabesp vai afetar não somente os municípios atendidos por ela, mas também as bacias hidrográficas do Estado de São Paulo.

Agenda Política Pública para a Governança Ambiental Paulista face às Mudanças Climáticas

As recentes inundações no Rio Grande do Sul escancararam a urgência de uma governança ambiental adaptativa para enfrentar os desafios locais e globais das mudanças climáticas. Em São Paulo, e em todos os estados do Brasil, as políticas de saneamento básico precisam considerar esse contexto disruptivo.

Entre 2017 e 2023, o Projeto Temático "Governança Ambiental na Macrometrópole Paulista face à variabilidade climática", financiado pela Fapesp (2015/03804-9), realizou uma ampla pesquisa interdisciplinar envolvendo mais de 100 cientistas da Universidade de São Paulo, Universidade Federal do ABC, entre outras.  Seu objetivo foi analisar o conjunto de processos que devem compor uma agenda de atuação e de integração de diferentes interfaces da governança ambiental associados à água e seus diversos usos.

Como resultado, foram publicados centenas de artigos em revistas científicas nacionais e internacionais, livros, e a série Agenda Política Pública, com diagnósticos e recomendações sobre saneamento básico, segurança hídrica, gestão de riscos de desastres, resíduos sólidos, periferias, serviços ecossistêmicos, zoneamento ecológico-econômico, transição energética, justiça e sustentabilidade, cultura e regeneração de rios.

Em conjunto, demonstram a centralidade de uma governança ambiental integrada, participativa, multinível, adaptativa, colaborativa e macrometropolitana (JACOBI et. al, 2023).

Antes de tomar uma decisão tão importante e de difícil reversão, como a privatização da Sabesp, não deveria o governo do Estado ouvir e dialogar com a sociedade e a ciência que ele próprio financia para orientar políticas públicas?

Referências

FREY, K., KONTOPP, M.A. Governança Pública da Água e do Saneamento Básico e o Desafio da Sustentabilidade e da Justiça. Agenda Política Pública, 2023.

JACOBI, P. R., TURRA, A., BERMANN, C., FREITAS, E.D., FREY, K., GIATTI, K., TRAVASSOS, L., SINISGALLI, P.A., MOMM, S., ZANIRATO, A. Governança Ambiental da Macrometrópole Paulista face à Variabilidade Climática. Ed. Rima: São Paulo, 2023.

KINJO, V.; JACOBI, P.; BARBOZA, T. V.; COLOMBO, E. O Tietê como guia: artes, etnografia do rio e serviços culturais ecossistêmicos. In: JACOBI, P., GATTI, L. Inovação para Governança da Macrometrópole Paulista face à emergência climática. Editora CRV: Curitiba, 2021.

LOBINA, Emanuele; WEGHMANN, Vera; NICKE, Katrin. Water remunicipalisation in Paris, France and Berlin, Germany. PUBLIC SERVICES INTERNATIONAL RESEARCH UNIT (PSIRU). Março, 2021.

Agenda Política Pública

1. Propostas para  Regeneração do rio Tietê: por uma nova cultura da água
2. Saneamento Básico e Nexos de Sustentabilidade
3. Governança Pública da Água e do Saneamento Básico e o Desafio da Sustentabilidade e da Justiça
4. Governança Democrática e Gestão Sustentável de Resíduos Urbanos
5. Uma abordagem territorial e multidimensional da insegurança hídrica intraurbana
6. Gestão de Riscos de Desastres
7. Transição Energética na Macrometrópole Paulista
8. Planejando uma transição para Sustentabilidade Justa na Macrometrópole
9. Desvendando os serviços ecossistêmicos das praias
10. Recomendações para a Ampliação da Abordagem de Serviços Ecossistêmicos no Zoneamento Econômico-Ecológico do Estado de São Paulo
11. Mapeamento Participativo em áreas periféricas promove Justiça e Sustentabilidade nas Cidades

ODS relacionados

1 - Erradicação da Pobreza
3 - Saúde e Bem-Estar
6 - Água Potável
11 - Cidades e Comunidades Sustentáveis
13 - Ação contra a Mudança Global do Clima
14 - Vida na Água
16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes
17 - Parcerias e Meios de Implementação


[*] Os autores agradecem à Fapesp pelo financiamento dos projetos RevRios "A revitalização de rios em cidades globais: desafios de São Paulo e experiências internacionais" (2019/02074-8)", RegeRivers "Cultura, ação socioambiental e regeneração de rios: experiências do Hudson, em Nova Iorque, e o Funan, em Chengdu" (2021/12328-7) e Macroamb "Governança Ambiental na Macrometrópole face às variabilidades climáticas" (2015/03804-9).
[I] Artista e pós-doutorando do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.
[II] Supervisor de Pós-Doutorado do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP.