Espaços urbanos heterogêneos: as diferentes faces de São Paulo
Por Marcelo Batista Nery, com supervisão de Sérgio Adorno
O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) foi criado em 1987, no contexto do retorno do Brasil à democracia. Desde então, as equipes do NEV-USP vêm se debruçando sobre a complexa relação entre a persistência das violações dos direitos humanos e a consolidação democrática no pais – o que levou o Núcleo a ser uma referência no estudo de temas como violência estatal, impunidade, exposição à violência, crime urbano, segurança pública, entre outros.
De fato, o estudo sempre teve como pano de fundo o conhecimento alimentado pela multidisciplinaridade acadêmica, e as parcerias internacionais sempre foram buscadas para mensurar e analisar as atitudes em relação aos direitos humanos e a qualidade da democracia. Mas a complexidade crescente das sociedades requeria tanto a contribuição de diversas disciplinas de pesquisa como a constituição de consensos entre as diferentes áreas do conhecimento.
Em 2012 o NEV-USP dá um passo fundamental no sentido de atender a essa demanda, quando consegue ao mesmo tempo dar continuidade aos seus estudos, aprofundando-os, e escrever uma nova página nesta história, tornando-se um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP com o programa de pesquisa Building Democracy Daily: Human Rights, Violence and Institutional Trust.
Para viabilizar essa análise uma rede internacional de pesquisadores interessados foi reunida e um dos primeiros consensos obtidos foi que a violência e as ilegalidades convergem em certos tipos de desenvolvimento urbano. Nota-se que o rápido processo de urbanização combinado com os modelos econômicos predominantes resultou em cidades marcadas por enormes desigualdades em termos sociais e econômicos, onde ilegalidades de todos os tipos coexistem com violações dos direitos humanos.
É claro que existem diferenças marcantes entre as cidades, entretanto ao atentar nas semelhanças, evidencia-se que as características dos locais nos quais os cidadãos estão inseridos são um dos condicionantes essenciais do modo como eles e as instituições públicas lidam com os problemas, como as políticas são ou não aplicadas, e do papel que os direitos humano e do estado de direito desempenham na aplicação de políticas.
Como medir essa heterogeneidade intra e interurbana, caracterizá-la, avaliar suas implicações analíticas e seus impactos para as políticas públicas urbanas tem mobilizado a atenção de sociólogos, geógrafos e urbanistas. Em São Paulo, área de estudo do CEPID, verificou-se ser imperativo um estudo que deveria:
- combinar o nível micro com o macro e explorar como esses níveis se aproximam e impactam um no outro.
- determinar o perfil socioeconômico da população, a forma como a ocupação urbana é consolidada, o tipo prevalente de ocupação e a presença ou ausência de habitações precárias.
- detalhar a caracterização das áreas de estudo levando em consideração os padrões urbanos em termos de: acesso a direitos (saúde, segurança pública, educação, serviços comerciais, culturais e de lazer, infraestrutura, parques etc.) e o perfil social, econômico e demográfico da população.
É interessante observar que inicialmente o projeto previa a utilização de algumas das 31 subprefeituras que compõe a capital paulista como unidade de análise. Contudo, a avaliação dos dados disponíveis, adequados à implementação em um Sistema de Informação Geográfica, permitiu um delineamento metodológico mais aprimorado.
A metodologia adotada baseou-se na delimitação de pequenos núcleos intraurbanos com base em variáveis sociodemográficas. Cada uma dessas áreas representa um perfil e um padrão espaço-temporal distinto. Foram analisadas quantitativamente as características urbanas dos setores censitários[1] da cidade de São Paulo reunindo-os em agrupamentos (clusters) mutuamente exclusivos. Desta forma, dezenove variáveis sensíveis a condições e alterações populacionais, ambientais, habitacionais, de mobilidade e de expansão urbana foram reunidas para separar o território paulistano em unidades que apresentassem homogeneidade intra-agrupamentos.
Desde logo tornou-se evidente que a dicotomia centro-periferia é inadequada ao entendimento da cidade e à sua boa gestão, pois ignora ou minimiza a diversidade social, a econômica e os usos do tecido urbano. Também se evidenciou que os padrões encontrados constituem um sistema complexo, dada a inter-relação com outros sistemas urbanos que podem se justapor ou se sobrepor, total ou parcialmente
Um dos primeiros pesquisadores da rede internacional a se posicionar sobre o resultado alcançado foi a Dra. Teresa Pires do Rio Caldeira, professora e presidente de Planejamento Municipal e Regional na Universidad de California, Berkeley. Teresa Caldeira, antropóloga pioneira no estudo sobre medo, crime e segregação em São Paulo, relatou o seguinte[2]:
"Com o tempo, a urbanização periférica gera espaços urbanos heterogêneos. Isso é especialmente claro na América Latina, onde esse modo de produzir a cidade é predominante há mais de 50 anos. Vários estudos demonstram que, à medida que crescem e melhoram, a heterogeneidade social e espacial dos bairros periféricos aumenta gradual e persistentemente. Mas como cada área tem uma dinâmica própria - e porque os serviços e a infraestrutura as alcançam em diferentes momentos e dependendo de várias condições, incluindo o nível e a persistência da organização política de seus residentes - o resultado é que aquelas que costumavam ser áreas relativamente homogêneas 50 anos atrás agora são áreas bastante heterogêneas. São Paulo é um bom exemplo, como demonstrado pelo contraste entre a análise produzida em 1977 por Seplan, o Secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo, e duas análises recentes usando dados do censo de 2010 de Marcelo Nery no NEV-USP (2014)[3] e Marques (2014). Enquanto o estudo da Seplan revelou uma vasta e homogênea periferia, os estudos mais recentes revelam uma cidade que é uma espécie de colcha de retalhos”.
Caldeira continua:
“Minha análise de São Paulo baseia-se principalmente em minhas próprias pesquisas nos últimos 30 anos, bem como em meu trabalho em colaboração com James Holston e em suas próprias pesquisas. É um trabalho construído em diálogo inconstante com nossos colegas brasileiros, especialmente Nabil Bonduki, Eduardo Marques, Marcelo Nery, Regina Prosperi Meyer e Raquel Rolniki. Nos últimos 40 anos, cientistas sociais e urbanistas brasileiros geraram uma produção fenomenal elucidando os processos de urbanização periférica em todo o Brasil. Lamento profundamente apenas ter sido capaz de citar uma fração mínima desta produção aqui" (Caldeira, 2017).
Agora, publicado na Revista Estudos Avançados, o estudo sobre os padrões urbanos coloca-se como estratégia para pesquisas e intervenções, assim como para oferecer subsídios passíveis de aplicação em diferentes linhas teóricas e áreas do conhecimento.
Com relação à pesquisa, a reunião de setores censitários semelhantes forneceu um melhor discernimento das singularidades da cidade. Assim, tem contribuído para um melhor estabelecimento de estratégias de amostragem, bem como para a adequação das técnicas de coleta de dados, a qualificação dos estimadores estatísticos e a realização das análises longitudinais.
No que diz respeito às intervenções, os padrões aqui encontrados podem formar a base de uma administração pública melhor embasada na estrutura do município, promovendo assim políticas públicas mais fundamentadas e mais efetivas.
Portanto, considerar as distinções do espaço urbano constitui uma das estratégias fundamentais para o entendimento desses aspectos sociais, de sua variabilidade e variação ao longo do tempo.
Por Marcelo Batista Nery
Pesquisador Colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – Programa USP Cidades Globais – e Coordenador de Transferência de Tecnologia do Núcleo de Estudos da Violência (Cepid-Fapesp). Doutor em sociologia pela USP, com doutorado sanduíche em City and Regional Planning na University of California. Graduado em ciências sociais (USP), é o primeiro com essa formação a obter o título de mestre em sensoriamento remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Tem experiência nas áreas de geoinformação e sociologia, com ênfase em análise espacial, geoprocessamento, planejamento urbano, segurança pública, homicídio, dinâmica criminal e distribuição espacial urbana.
Bibliografia
Caldeira T. (1984). A política dos outros: o cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense.
Caldeira, T. (2017). Peripheral urbanization: Autoconstruction, transversal logics, and politics in cities of the global south. Environment and Planning D: Society and Space, v. 35, n. 1, p. 3-20. Disponível em: <https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0263775816658479>. Acesso em: 04 dez. 2019.
Marques E (ed) (2014) A Metrópole de São Paulo no Século XXI—Espaços, Heterogeneidades e Desigualdades. São Paulo: CEM-UNESP.
Nery, M. B. et al. (2014). A delimitação de áreas-chave para estudos longitudinais em São Paulo (SP): relatório interno. São Paulo: NEV-USP.
Nery, M. B.; Souza, A. L.; Adorno, S. (2019). Os padrões urbano-demográficos da capital paulista, v. 33, n. 97. Estudos Avançados, set./dez. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/s0103-4014.2019.3397.002>. Acesso em: 04 dez. 2019.
[1] Setor censitário é uma unidade estabelecida por critérios operacionais pelo IBGE para a coleta de dados em função do perímetro urbano. Para as áreas urbanas, esses setores possuem em torno de 250 a 350 domicílios
[2] Texto adaptado. Tradução Livre.
[3] Referindo-se à primeira versão do relatório descritivo do estudo.