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Igualdade de gênero nas cidades: avançando em uma agenda local integrada de cuidados

por admin - publicado 13/05/2024 10:10 - última modificação 15/05/2024 12:54

Autora: Kelly Komatsu Agopyan

Kelly Komatsu Agopyan[I]

Compreender como a desigualdade de gênero é reproduzida nas cidades perpassa necessariamente a análise de como a organização e formulação de políticas urbanas desconsidera a centralidade das atividades de cuidado na vida cotidiana. Inicialmente, é necessário enfatizar que todas as pessoas, sem exceção, ainda que em graus diferentes ao longo de suas vidas, demandarão cuidados. Ainda que não se tenha uma definição consensual sobre o que seria “cuidado”, algumas autoras o discutem a partir da noção de um conjunto de atividades interdependentes, essenciais para a satisfação das necessidades básicas e para a existência e manutenção da vida cotidiana das pessoas (Falú; Colombo, 2022), ou ainda a partir da gestão cotidiana do bem-estar próprio e de outras pessoas (Durán, 2018).

A realização de atividades de cuidados está no cerne da manutenção e reprodução da vida, ainda que seja um assunto equivocadamente relegado apenas ao âmbito doméstico e privado, ficando à cargo praticamente exclusivo de meninas e mulheres. A invisibilização da interdependência da realização de cuidados para a própria viabilidade da vida produtiva e pública é uma marca das sociedades modernas patriarcais e da divisão sexual do trabalho, o que também se reflete no contexto urbano.

A feminização do cuidado é uma realidade não só no Brasil como internacionalmente. Pesquisas de uso de tempo são relevantes para demonstrar a desigualdade do uso do tempo vinculada à realização de atividades de cuidado. Mais tempo despendido para atividades de cuidado significa menos tempo para o próprio desenvolvimento pessoal e profissional. Segundo dados das pesquisas sobre uso de tempo, sistematizadas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), praticamente em todos os países da região analisados, o tempo despendido para realização de trabalho não remunerado por mulheres é quase o dobro do que o de homens.

No Brasil, dados da PNAD-Contínua (2022) divulgados pelo IBGE revelam que mulheres ocupadas (inseridas no mercado de trabalho) dedicam uma média de 17,8 horas semanais para realização de afazeres domésticos e de cuidados, em comparação a 11 horas dos homens. Ao comparar as médias de pessoas não ocupadas, a discrepância é ainda maior: homens dedicam 13,4 horas a essas atividades, enquanto as mulheres 24,5 horas. Esses dados demonstram que, independente do status laboral formal, as mulheres sempre serão as mais sobrecarregadas com tarefas domésticas e de cuidados.

Mas para melhor analisar essa arquitetura social desigual do cuidado é necessário considerar como as políticas urbanas – que não são neutras em relação às construções de gênero – fazem parte dessa arquitetura, reproduzindo e aprofundando essas desigualdades. A incompatibilidade da organização territorial das cidades com o cuidado (Segovia; Rico, 2017), sobretudo na América Latina, privilegia deslocamentos pendulares casa-trabalho, não dá condições de mobilidade adequadas para o deslocamento intrabairro para realização de tarefas domésticas e de cuidado, além de não prover infraestruturas de serviços públicos integradas de cuidado próximas às comunidades. Essa realidade dificulta o acesso ao cuidado, impactando diretamente a qualidade de vida das pessoas que cuidam – majoritariamente mulheres – e que necessitam cuidados – como crianças, idosos, pessoas com deficiência, entre outras. O direito das mulheres à cidade é então condicionado à sua possibilidade de realizar atividades de cuidado.

Entender o cuidado a partir do território demanda uma análise interseccional, sobretudo, de gênero, raça e classe. A feminização do cuidado é incorporada à vigente lógica mercadológica que privatiza o fornecimento de serviços de cuidado, acessíveis apenas às pessoas que podem pagar. A mão de obra (mal) remunerada desse setor continua sendo as mulheres, sobretudo, negras, de baixa renda e periféricas. Segundo dados do IBGE (2019), 45% dos postos de trabalho remunerado de cuidados eram ocupados por mulheres negras (em comparação a 31% de mulheres brancas).

Finalmente, a análise territorial também traz importantes aspectos sobre as redes sociais de cuidado que se conformam nas próprias comunidades como resposta à ausência de políticas públicas locais. Essas redes, também lideradas e majoritariamente conformadas por mulheres, são dinâmicas e representam as diferentes configurações que as relações de cuidado podem tomar, para além do Estado e do mercado privado, a partir da dimensão de “ajudas” (Guimarães; Vieira, 2020).

Essa análise que conecta cuidados, gênero e urbanismo ainda é insuficientemente abordada pela literatura e pelas políticas públicas, o que se reflete também na ausência de dados desagregados territorialmente.  Algumas autoras defendem o avanço do uso de “cartografias do cuidado” como instrumentos que permitem evidenciar as vulnerabilidades e as ausências de direitos e infraestruturas de cuidado nos territórios, orientando a formulação e implementação de políticas públicas (Falú; Colombo, 2022).

Esse enfoque na dimensão territorial do cuidado deve ocorrer simultaneamente aos esforços de reconhecer o cuidado como um direito. A discussão sobre o direito a cuidar, a ser cuidado e ao autocuidado já obteve alguns avanços no contexto internacional. Apenas para citar alguns marcos, pode-se mencionar o Consenso de Quito (2007), aprovado no âmbito da X Conferência Regional da Mulher da América Latina e Caribe da CEPAL, que reconheceu a importância do cuidado e do trabalho doméstico para a reprodução econômica do bem-estar da sociedade, clamando por políticas de Estado para superar a divisão sexual do trabalho. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável também estabeleceu como meta 5.4, do ODS 5, sobre igualdade de gênero:

“Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais”.

Mais recentemente, em 2023, a Assembleia Geral da ONU proclamou o dia 29 de outubro como Dia Internacional de Cuidado e Apoio (RES 77/317), com intuito de buscar conscientização sobre a importância do cuidado para o alcance da igualdade de gênero e sua contribuição para sustentabilidade das sociedades e de suas economias. Ainda que essas resoluções não sejam vinculantes, o enfoque de direitos pode fortalecer a institucionalidade de políticas públicas (Pautassi, 2018) e a responsabilidade social do cuidado (Batthyány, 2015).

Nesse sentido, no contexto brasileiro, a Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família, criada em 2023, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome, está construindo a Política e o Plano Nacional de Cuidados, que já conta com um marco conceitual que passou por consulta pública na plataforma virtual Participa + Brasil. Além de reconhecer o cuidado como direito, a política também visa garantir o atendimento de cuidado a todas as pessoas - sobretudo crianças, idosos, pessoas com deficiência e pessoas trabalhadoras do cuidado -, o trabalho decente para as pessoas que cuidam, bem como a valorização e redistribuição social do cuidado.

Espera-se que, depois de aprovada, essa política consiga ser capilarizada e descentralizada nas cidades e territórios, orientando as políticas locais e o fortalecimento e integração de infraestruturas de cuidado, a exemplo de esforços que já têm ocorrido nacionalmente em Belém e Belo Horizonte e em outros países latino-americanos como Uruguai (Montevideo), Colômbia (Bogotá) e México (Cidade do México).

Belo Horizonte, por exemplo, foi pioneira no país ao implementar, desde 2022, o projeto-piloto “Ver-o-cuidado” em parceria com a ONU Mulheres e a Open Society Foundations. Dentre as ações previstas, o projeto realizará um diagnóstico sobre a oferta e demanda de cuidados na cidade, bem como a instalação de um observatório dos cuidados e a formação de servidores públicos sobre o tema.

Já o caso de Bogotá, articula e organiza seus serviços e iniciativas de cuidado a partir do Sistema Distrital de Cuidado - institucionalizado em 2023 -, que tem como uma de suas formas de operação os “Quarteirões do Cuidado” (Manzanas del Cuidado). Esses quarteirões, descentralizados pela cidade, integram, em um só local, diferentes serviços para atender quem demanda cuidados e para as pessoas que cuidam. Isso pode incluir assistência jurídica e psicossocial, formações profissionais, atividades de esporte e lazer, lavanderias comunitárias, recreação infantil, centros dia para idosos, entre outros serviços.

Esses ainda são exemplos considerados como “referências” e exceções à regra, mas que demonstram como a agenda dos cuidados pode concretamente integrar a agenda local.  Não obstante, reconhece-se que o desafio político e institucional é grande. Além da vontade política da liderança local e alocação de recursos, é necessário estabelecer uma governança intersetorial capaz de transversalizar a agenda e integrar os diferentes serviços que ela demanda, bem como dialogar com as comunidades e construir um plano de ação com participação social. Soma-se a isso, a necessidade de coletar dados territorializados para diagnóstico e monitoramento mais eficiente dos cuidados e a disputa simbólica e cultural para valorização dos cuidados na opinião pública.

Ainda assim, a despeito de todos os entraves que possam dificultar o avanço dessa pauta, uma relevante janela de oportunidades está atualmente aberta para que o tema ganhe mais centralidade no debate público e pressione governos locais a agirem. A crise social dos cuidados já está colocada e tende a se aprofundar gradativamente, sobretudo, com o envelhecimento exponencial da população que demandará mais cuidados e mais pessoas cuidadoras. Não menos importante, a sobrecarga dos cuidados que há séculos recai sobre mulheres e meninas, impondo-lhes de forma compulsória o papel de cuidadoras, deve ser, de uma vez por todas, contestada, já que só assim será possível alcançar uma igualdade de gênero real e sustentável.

Referências

BATTHYÁNY, Karina. Las políticas y el cuidado en América Latina: Una mirada a las experiencias regionales. CEPAL, 2015.

DURÁN, María Ángeles. Alternativas metodológicas en la investigación sobre el cuidado. In: FERREYRA, Marta (coord.). El trabajo de cuidados: una cuestión de derechos humanos y políticas públicas. ONU Mujeres, 2018, p.24-42.

FALÚ, Ana; COLOMBO, Eva Lía. Infraestructuras del cuidado: un instrumento de redistribución social en los territorios. Revista Vivienda y Ciudad, vol.9, diciembre 2022, p.191-217.

GUIMARÃES, Nadya Araújo; VIEIRA, Priscila P. F. As “ajudas”: o cuidado que não diz seu nome. Estudos Avançados, 34 (98), 2020, p.7-23.

PAUTASSI, Laura. El cuidado: de cuestión problematizada a derecho. Un recorrido estratégico, una agenda en construcción. In: FERREYRA, Marta (coord.). El trabajo de cuidados: una cuestión de derechos humanos y políticas públicas. ONU Mujeres, 2018, p.175-188.

RICO, María Nieves; SEGOVIA, Olga (eds.). ¿Quién cuida en la ciudad? Aportes para políticas urbanas de igualdad. CEPAL, 2017.

ODS relacionados

5 - Igualdade de Gênero
8 - Trabalho decente e crescimento econômico
10 - Redução das Igualdades
11 - Cidades e Comunidades Sustentáveis
17 - Parcerias e meios de implementação


[I] Internacionalista, doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da USP; pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globaisdo Instituto de Estudos Avançados da USP, sob supervisão da professora Janina Onuki (FFLCH-USP), pesquisando direito à cidade e gênero.