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Mudanças Climáticas: A Adaptação Começa pela Habitação

por admin - publicado 26/08/2024 10:15 - última modificação 11/10/2024 12:16

Autoras: Rosane Segantin Keppke e Amarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardo

Rosane Segantin Keppke[I], Amarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardo[II]

26 de agosto de 2024

O título deste ensaio foi pensado para ser facilmente memorizado, a fim de fincar uma bandeira de alerta no vasto plasma das questões que disputam a agenda pública, concorrendo com muitas outras para se transformar em política pública prioritária.  Trata-se, aqui, de chamar a atenção para a problemática das favelas situadas em áreas de risco de deslizamentos, solapamentos e inundações, que acumulam passivos sociais, urbanos, ambientais e, portanto, são os territórios mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos, notadamente as chuvas de maior intensidade.

Este tema resulta de uma pesquisa em andamento junto ao Centro de Síntese USP Cidades Globais, do Instituto de Estudos Avançados, com o título de “Modelagem de políticas públicas para redução de passivos urbano-ambientais em São Paulo, combinada a uma abordagem comparativa com as recentes inundações da Região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul – para a qual o Observatório das Metrópoles fez um ensaio projetando a mancha de inundação do dia 06/05/2024 sobre o mapa da renda por setor censitário, com dados de 2010[1], conforme apresentado na Figura 1.

Figura 1 – Mapa de área alagada versus
renda da concentração urbana de Porto Alegre

Figura 1 - Ensaio: Mudanças Climáticas: A Adaptação Começa pela Habitação

Fonte: elaborado pelo Observatório das Metrópoles (2024).

Segundo as constatações dos pesquisadores do Rio Grande do Sul (Observatório das Metrópoles, 2024):

Todos os gaúchos foram afetados de alguma forma pelas enchentes, mas, quando comparamos as áreas alagadas com a renda média de cada região, dá para perceber que as áreas mais pobres são as mais atingidas [...] é verdade que, ao contrário de outras enchentes menores, dessa vez algumas áreas mais ricas também alagaram, como o bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Mas, ainda assim, não dá para dizer que todos foram atingidos da mesma forma.

De fato, ainda que bairros nobres tenham sido impactados, a resiliência financeira destas famílias seguramente as coloca em melhores condições de se recomporem, se comparadas às famílias mais pobres. Além disso, “as áreas que mais sofreram com as enchentes apresentam concentração expressiva de população negra”, que herdou as desigualdades sociais da escravidão, abolida há pouco mais de um século.

Figura 2 – Mapa da área inundável TR 100 versus Índice Paulista
de Vulnerabilidade Social da cidade de São Paulo e outros dados

Figura 2 - Ensaio: Mudanças Climáticas: A Adaptação Começa pela Habitação

Fonte: elaborado pelas autoras com base nos dados do Geosampa (São Paulo, Cidade, 2024).

Fazendo-se um paralelo com o caso gaúcho, em São Paulo aplicou-se metodologia semelhante com base nos dados do Geosampa (São Paulo, Cidade, 2024), logo para tanto foram adotados:

1) O Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) correspondente ao censo de 2010 do IBGE, para equiparar com os dados de Porto Alegre, que em São Paulo considera não apenas a privação de renda, mas também as condições de acesso às políticas públicas nos setores censitários (SEADE, 2013).

2) O perímetro de área inundável TR 100, “em que um determinado evento pode ser igualado ou superado pelo menos uma vez em 100 anos”, de acordo com os metadados do portal.

Os resultados constam no mapa da Figura 2. Chama atenção o fato de que grandes porções da área inundável TR 100, às margens dos Rios Tietê e Pinheiros, incidem sobre setores censitários do centro econômico-financeiro da cidade, caracterizados por domicílios residenciais e não residenciais de padrão médio e alto, conforme apresentados na camada de Uso Predominante do Solo do Geosampa. Como explicar essa aparente contradição paulistana comparando-se à Concentração Urbana de Porto Alegre? A compreensão requereu que fossem adicionadas outras informações:

3) Ocorrências pontuais de inundações de 2019, que dentre os anos com dados georreferenciados, foi aquele com as maiores precipitações pluviométricas no recorte de 100 anos desde a inundação de referência, no início do século passado.

4) Localização dos loteamentos irregulares, núcleos de regularização fundiária de habitação de interesse social, favelas e remanescentes de mata atlântica, que são marcadores de vulnerabilidades urbanas, sociais e ambientais.

Os grupos de variáveis 3 e 4 indicam que ao longo do tempo, os segmentos sociais mais vulneráveis se deslocaram juntamente com as ocorrências de inundação em direção à periferia, tornando-se reféns da ocupação deletéria do solo. Esta é uma dinâmica bem conhecida dos estudiosos de Urbanismo: os mais pobres residem onde lhes é possível pagar o preço de mercado para aquisição ou aluguel de moradia, ou seja, nos territórios de pior infraestrutura e pior controle do ordenamento urbano-ambiental. E quando há melhoramentos que valorizam a terra, há uma tendência à gentrificação[2] – foi isso o que aconteceu com o enobrecimento do centro econômico-financeiro de São Paulo após a concentração continuada de grandes investimentos públicos e privados, a começar pela retificação e drenagem da bacia do Tietê pela Companhia Light, a partir das prerrogativas do decreto 4487 de 9 de novembro de 1928, cuja concessão incluía a área correspondente à máxima de cheia, e deu lugar aos loteamentos nobres dos Jardins, Pinheiros e Pacaembu.

A precariedade territorial da moradia popular é uma tendência nos países emergentes, entre os quais o Brasil, de modo que as considerações finais que seguem são pertinentes para os casos de São Paulo, Porto Alegre e região metropolitana.

  • Se aos mais pobres resta morar nos territórios de maior vulnerabilidade social, urbana e ambiental, são eles também os mais vulneráveis aos impactos das inundações intensificadas pelas mudanças climáticas, logo, a adaptação começa pela habitação.
  • A Constituição e o Estatuto da Cidade – lei federal 10.257 de 10 de julho de 2001 disponibilizam instrumentos urbanísticos que viabilizam, por um lado, assentar a população vulnerável em áreas dotadas de infraestrutura, ou, por outro lado, levar infraestrutura aonde a população vulnerável já se encontra assentada.
  • Optar por uma ou outra estratégia depende da leitura territorial e da capacidade administrativa e dos recursos de cada caso, mas o estado da arte em desenho urbano-ambiental recomenda cidades compactas que otimizem a mobilidade, a infraestrutura e o uso urbano do solo a fim de preservar os usos rurais e ambientais.
  • O limite de compactação das cidades é a sua própria capacidade de suporte urbano-ambiental e seus aparatos de resiliência.
  • Independentemente da estratégia, é preciso contornar a tendência à gentrificação onde houver intervenções de habitação de interesse social, de modo a fixar a população-alvo onde forem satisfatórias as condições de infraestrutura, serviços e resiliência urbana.

Em síntese, para escolher entre levar infraestrutura ou trazer a população vulnerável para onde já há; para orientar as políticas habitacionais pela cultura de novos empreendimentos ou de retrofit; para optar pela cultura de aquisição ou locação; tudo isso implica, na prática, em adotar com maior ou menor predominância o instrumento da reurbanização de favelas - neste sentido, este ensaio instiga a reflexão para o uso ambientalmente mais responsável deste instrumento do que tem sido praticado, bem como o uso mais intensificado dos instrumentos de coibição dos imóveis ociosos e subutilizados para fins de habitação de interesse social em regiões centrais e adjacências.

Diante destes dilemas e complexidades, torna-se recomendável tomar decisões com fundamento na avaliação ambiental estratégica da política habitacional e das políticas vinculadas, sob ponto de vista sistêmico de cenários futuros que considerem as mudanças climáticas e seus agravos às vulnerabilidades sociais.

Referências

SANTOS, S. M.; GALLARDO, A. L. C. F. AAE no planejamento e gestão dos recursos hídricos: uma visão geral da literatura científica internacional. REGA - REVISTA DE GESTÃO DE ÁGUA DA AMÉRICA LATINA, v. 21, p. 1-16 Disponível em  http://dx.doi.org/10.21168/rega.v21e8 Acesso em 15/ jul/2024.

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES.  Núcleo Porto Alegre analisa os impactos das enchentes na população pobre e negra do Rio Grande do Sul. Disponível em https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/nucleo-porto-alegre-analisa-os-impactos-das-enchentes-na-populacao-pobre-e-negra-do-rio-grande-do-sul/#:~:text=Mapas%20produzidos%20pelo%20N%C3%BAcleo%20Porto%20Alegre%20do%20INCT,clim%C3%A1tico%20extremo%20ocorrido%20no%20Rio%20Grande%20do%20Sul. Acesso em 15/ jul/2024.

SÃO PAULO (CIDADE). Mapa Digital da Cidade de São Paulo (Geosampa). Disponível em https://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx. Acesso em 15/jul/2024.

ODS relacionados

  • 10 - Redução das Desigualdades
  • 11 - Cidades e Comunidades Sustentáveis
  • 13 - Ação contra a Mudança Global do Clima


[I] Pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP; professora e pesquisadora da Escola Superior de Gestão e Contas do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.
[II] Professora e pesquisadora livre-docente da Escola Politécnica da USP; professora e pesquisadora do programa Cidades Inteligentes e Sustentáveis da Universidade Nove de Julho; pós-doutora pela School of Environmental Sciences da University of East Anglia, Reino Unido.
[1] Os dados censitários de 2022 ainda não estavam disponíveis à época.
[2] Num conceito amplo, o fenômeno da gentrificação implica no distanciamento da população mais pobre em relação aos territórios enobrecidos, devido à inviabilidade de renda para morar ali de aluguel ou casa própria.