Poluentes Atmosféricos Advindos do Espaço Urbano e Regiões Metropolitanas como Determinantes para a Saúde das Populações, e o Papel das Políticas Públicas
Juliana Wotzasek Rulli Villardi e Nelson Gouveia
O ambiente urbano, de forma geral, representa um desafio para o setor da saúde. O uso do espaço urbano, as condições de moradia, as opções de mobilidade, e o planejamento da funcionalidade das cidades, são fatores que condicionam e determinam a saúde das pessoas. Estudos da Organização das Nações Unidas apontam que a população urbana passe de 56% do total global em 2021 para 68% em 2050[1] (ONU-Habitat, 2022) e que este fato pode acarretar o aumento de doenças e agravos à saúde.
O Brasil é um país com dimensões continentais, área geográfica extensa e diversificada. Tem-se como resultado uma variedade de ecossistemas, climas, culturas, recursos naturais, e atividades econômicas, com diferentes setores produtivos, que influenciam diretamente o seu desenvolvimento. Algumas cidades são totalmente planejadas, seguindo princípios urbanísticos específicos, enquanto outras crescem de forma desordenada, sem um plano de desenvolvimento estruturado. Isso resulta em diferentes formas urbanas, infraestruturas e atividades humanas, padrões de ocupação do solo, sistemas viários, áreas verdes, dentre outros.
Os poluentes atmosféricos oriundos das áreas urbanas e regiões metropolitanas são uma preocupação para a qualidade ambiental e a saúde pública. À medida que as cidades crescem em tamanho e população, aumenta a emissão dos poluentes provenientes de várias fontes como os veículos, as indústrias, o processo de produção de energia, atividades domésticas, gestão de resíduos, queimadas, dentre outras atividades humanas.
Em 2019, a poluição do ar foi considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o maior risco ambiental para a saúde[2]. Diversos estudos em todo o mundo demonstram a associação entre a poluição atmosférica e a morbimortalidade. A exposição à poluição do ar causa anualmente milhões de mortes e anos perdidos de vida saudável. Efeitos como as doenças respiratórias e cardiovasculares, baixo peso ao nascer, absenteísmo escolar, câncer de pulmão, aumento do risco de diabetes, perda de massa óssea, restrições à aquisição de habilidades cognitivas necessárias à educação, são alguns dos impactos da poluição do ar relatados na literatura científica.
Para além dos efeitos diretos na saúde, a poluição atmosférica também pode ter impactos econômicos, sociais e, claro, ambientais, significativos. O aumento dos gastos de saúde, absenteísmo no trabalho, queda na produtividade, e redução da qualidade de vida, são algumas das consequências relacionadas à poluição do ar em áreas urbanas e regiões metropolitanas.
É também consenso na literatura que crianças, idosos e pessoas com doenças pré-existentes são especialmente vulneráveis aos efeitos nocivos da poluição do ar. Diante desse cenário é fundamental que autoridades governamentais e comunidades locais se engajem em práticas e políticas que visem a redução da poluição atmosférica.
No Brasil, desde 1989 o Programa Nacional de Qualidade do Ar (PRONAR) estabelece o monitoramento da qualidade do ar como uma atribuição do Estado. Metas como a definição dos limites de emissão para fontes poluidoras prioritárias e dos padrões de qualidade do ar, implementação da rede nacional de monitoramento da qualidade do ar, inventário nacional de fontes e emissões, capacitação laboratorial e de recursos humanos, são estratégias que devem ser realizadas visando permitir o desenvolvimento econômico e social do país de forma ambientalmente segura.
Em 1990 foram definidos padrões nacionais de qualidade do ar para o Brasil, por meio do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), expressos na Resolução nº 3/1990. No contexto internacional, em 2005 a OMS revisou os padrões de qualidade do ar e lançou as Diretrizes da Qualidade do Ar - AQGs (Air Quality Guidelines). Essas diretrizes fornecem orientações para os poluentes atmosféricos mais comuns, estabelecendo níveis máximos recomendados para proteger a saúde humana. Entretanto, nossos padrões nacionais de qualidade do ar permaneceram com valores bem acima dos recomendados pela OMS, e somente em 2018 foi realizada uma atualização desses padrões pelo CONAMA (Resolução CONAMA nº 491). Porém, a OMS realizou uma segunda revisão dos padrões de qualidade do ar em 2021, considerando novas evidências científicas e conhecimentos acumulados, destacando a importância da redução dos níveis de poluição do ar para proteger a saúde, e a definição de metas mais restritivas para alguns poluentes. Assim, nossos padrões nacionais continuam muito aquém do recomendado pela OMS para proteger a saúde da população.
Ainda que o avanço no conhecimento científico internacional e nacional já tenha apresentado evidências de efeitos adversos na saúde humana, mesmo em níveis de poluentes abaixo dos padrões estabelecidos pela legislação, os valores das normativas nacionais chegam a ser cinco vezes mais permissivos do que os valores de segurança definidos pela OMS[3]. É fundamental que o Brasil esteja atento para essas atualizações e considere de forma oportuna sua aplicação no país. Soma-se a isso o fato de que apenas 11, dos 27 estados, monitoram a qualidade do ar[4] no Brasil.
A OMS, preocupada com os impactos da poluição atmosférica na saúde, compilou dados de diversos países, e desde 2011 disponibiliza banco de dados com médias anuais de poluentes e ferramentas para traduzir esses dados em impactos na saúde. Também observa o aumento de estações de monitoramento em todo o mundo. Em uma década (2011 a 2022), o número de cidades e vilas em que a qualidade do ar é medida aumentou em aproximadamente 600%, quando observado o uso de monitores de baixo custo. Para o setor saúde isso representa uma oportunidade para se realizar análise de situação de saúde, a partir da necessidade de se identificar a exposição humana aos poluentes atmosféricos especialmente em localidades com concentrações elevadas, e será fundamental para monitorar o progresso das políticas e intervenções nacionais[5].
Apesar de existirem padrões estabelecidos para a qualidade do ar, ainda é necessário explorar e destacar a importância das ações do setor saúde no enfrentamento desse problema. Embora as diretrizes e regulamentações sejam essenciais para orientar medidas de controle e redução da poluição do ar, é importante compreender como o setor saúde pode desempenhar um papel ativo na precaução, prevenção, monitoramento da exposição e no tratamento das doenças relacionadas à qualidade do ar, além de promover a conscientização e a adoção de comportamentos saudáveis da população.
O Ministério da Saúde do Brasil vem estruturando, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), ações de vigilância em saúde ambiental desde 2001, que basicamente estruturam-se no pensar e no agir em saúde a partir de relações entre grupos populacionais e seu processo de exposição a fatores ambientais. Busca detectar e monitorar as diferentes atividades de natureza econômica ou social que gerem poluição atmosférica para caracterizar os riscos para as populações expostas[6], especialmente aquelas consideradas mais vulneráveis; até a abordagem da poluição do ar relacionada à saúde humana no contexto da prática da Atenção Primária à Saúde[7].
Há necessidade de integralidade na atenção à saúde, o que pressupõe ações de saúde em todas as instâncias e pontos da Rede de Atenção à Saúde do SUS, com articulação e construção conjunta de protocolos, linhas de cuidado e matriciamento da saúde. Nesse sentido, é necessário examinar a maneira pela qual os profissionais de saúde podem integrar as suas ações levando-se em consideração a exposição à poluição atmosférica, e estabelecer parcerias interdisciplinares para abordar essa questão de forma abrangente.
Atualmente no Brasil existem cidades que possuem unidades de saúde denominadas sentinelas, que estão em assistências médicas ambulatoriais, unidades básicas de saúde ou hospitais, e são selecionadas de acordo com critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde como, por exemplo, a proximidade com fontes poluidoras fixas (indústrias e estabelecimentos) e móveis (frota veicular). Apesar de ser uma iniciativa inovadora em todo o mundo, ainda há muito para avançar no desenvolvimento de instrumentos, métodos de análises e vigilância da exposição, e a proposição de modelos de governança do setor saúde. Deve atuar de forma articulada com os demais setores que tratam desse tema, em especial o ambiental.
Com a urbanização ocorrendo em ritmo acelerado em todo o mundo, há que se observar que as cidades podem ter um papel fundamental na mitigação das emissões de poluentes e, consequentemente, no combate à mudança do clima. Nesse sentido, há uma grande oportunidade para desenvolver políticas que maximizem os cobenefícios das reduções de emissões de poluentes na qualidade do ar e na saúde. No contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, e acordos de desenvolvimento global, como o acordo de Paris, há o entendimento de que as cidades podem, e devem ser, a fonte de soluções dos desafios enfrentados pelo mundo atualmente.
A Organização Panamericana da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil, com o intuito de acelerar a implementação de ações intersetoriais de impacto sinérgico nos municípios, traz uma proposta de atuação, a partir de evidências e reflexões, de forma a facilitar a compreensão e orientar os gestores públicos municipais a atuarem em uma Agenda Convergente de Mobilidade Sustentável e Saúde, reunindo três dimensões: mobilidade urbana, qualidade do ar e atividade física. Tem sido comum que as evidências e as soluções para essas três dimensões tenham sido produzidas de forma individual, desarticulada, e com pouca sinergia no planejamento e na implementação de ações. Ao promover uma visão convergente, fica possível subsidiar o planejamento das cidades, com ações integradas, que ajustem as perspectivas de futuro, solucionem problemas e otimizem recursos, sendo assim capaz de produzir efeitos sinérgicos na saúde e, consequentemente, no bem-estar da população[8].
Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas divulgados anualmente são um alerta à humanidade[9]. As mudanças induzidas pelo homem no planeta, em especial nas cidades, torna incerto o futuro não só de indivíduos e comunidades, mas de toda a humanidade.
A Nova Agenda Urbana do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) dedicada à promoção de cidades mais sociais e ambientalmente sustentáveis apresenta uma mudança de paradigma na ciência das cidades e representa uma visão compartilhada para um futuro melhor e mais sustentável, em que todas as pessoas tenham direitos e acesso iguais aos benefícios e oportunidades que as cidades podem oferecer. Vislumbra cidades e assentamentos humanos que cumpram sua função social, de promover sociedades saudáveis por meio da promoção do acesso a serviços públicos adequados, inclusivos e de qualidade; um ambiente limpo, levando em consideração as diretrizes de qualidade do ar[10].
Também o relatório de desenvolvimento humano, denominado tempos incertos, vidas instáveis: construir o futuro num mundo em transformação, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em setembro de 2022, traz dimensões e desafios que devem ser levados em consideração para o enfrentamento em relação à qualidade do ar nas cidades, e que deve incluir a implementação de políticas públicas, a superação da desigualdade social com garantia de que todas as pessoas tenham acesso à qualidade do ar.
A construção da perspectiva de cidades promotoras de saúde se fundamenta na articulação de saberes e práticas trilhados pela saúde pública ao longo da história, com a necessidade da análise crítica sobre as condições socioambientais que determinam a saúde. É importante que o Brasil promova pesquisas e estudos para avaliar os impactos da poluição atmosférica na saúde e no meio ambiente, fortaleça as políticas e medidas eficazes para reduzir as emissões de poluentes e melhorar a qualidade do ar, com tecnologias mais limpas, promova o transporte sustentável, a gestão adequada de resíduos e o incentivo a práticas sustentáveis em diferentes setores econômicos. Há o desafio de promover uma melhor qualidade de vida e saúde nas cidades sob a perspectiva da equidade[11].
[I] - Centro de Síntese USP Cidades Globais e Fiocruz.
[II] - Centro de Síntese USP Cidades Globais e Faculdade de Medicina da USP.
[1] - ONU-Habitat. World Cities Report 2022. Acessado em 26 junho de 2023. Disponível em: https://unhabitat.org/wcr/
[2] - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. A Organização Mundial da Saúde define 10 prioridades de saúde para 2019. Brasília, DF, 19 jan. 2019. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/17-1-2019-dez-ameacas-saude-que-oms-combatera-em-2019#:~:text=Em%202019%2C%20a%20polui%C3%A7%C3%A3o%20do,seus%20pulm%C3%B5es%2C%20cora%C3%A7%C3%A3o%20e%20c%C3%A9rebro . Acesso em: 27 junho 2020.
[3] - A Resolução 491/2018 adota como padrão de [alerta de] Emergência, por exemplo, 100 µg/m3 de material particulado. a OMS diz que o limite deveria ser 20 µg/m3.
[4] - PLATAFORMA DE QUALIDADE DO AR. Disponível em: https://energiaeambiente.org.br/qualidadedoar/ . Acesso em: 22 jun. 2023.
[5] - WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO ambient air quality database, 2022 update: status report. Geneva: World Health Organization, 2023. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. Acesso em: 22 jun. 2023.
[6] - BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Articulação Estratégica de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância em Saúde [recurso eletrônico]. 5. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2021
[7] - FLOSS, Mayara et al. Poluição do Ar: uma revisão de escopo para recomendações clínicas para a medicina de família e comunidade. Rev. bras. med. fam. comunidade, v. 17, n. 44, p. 3038, 2022. Disponível em: https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/3038 . Acesso em: 4 mar. 2022.
[8] - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Agenda Convergente Mobilidade Sustentável e Saúde. Documento de Referência. Brasília, D.F.: Organização Pan-Americana da Saúde, 2020. Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO.
[9] - IPCC. Reports. Disponível em: https://www.ipcc.ch/reports/ . Acesso em: 22 maio 2023.[10] - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nova Agenda Urbana. Português. 2019. Disponível em: https://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Brazil.pdf . Acesso em: 03 abril 2023.
[11] - GOUVEIA, N. Saúde e meio ambiente nas cidades: os desafios da saúde ambiental. Saude soc [Internet]. 1999 Jan;8(1):49–61. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12901999000100005 . Acesso em: 21 agosto 2022.