Edição 110 de Estudos Avançados dedica dossiê aos impactos da tecnologia digital na sociedade
"Os atuais patamares de desenvolvimento tecnológico recolocam, sob novas perspectivas, os velhos dilemas entre os efeitos positivos ou perversos do emprego de tecnologias em todos os campos da existência social”, afirma o sociólogo Sérgio Adorno, editor da revista Estudos Avançados, ao apresentar o dossiê "Implicações Humanas das Tecnociências" da edição 110 da publicação quadrimestral do IEA, já disponível online, gratuitamente, na Scientific Electronic Library Online (SciELO).
Ele frisa que o artigo de abertura do dossiê, “Diagnósticos da Contemporaneidade”, da semióloga Lucia Santaella, ex-titular da Cátedra Oscar Sala (parceria do IEA com o CGI.br), ressalta as características da chamada segunda era da internet, “caracterizada pelos big data, pela explosão de dados, pela datificação”. A autora identifica cinco atributos dessa era: hibridismo, emaranhado temporal, interatividade onipresente, aceleração e estilhaçamento discursivo.
Fragmentação
De acordo com Santaella, “as consequências políticas, culturais e psíquicas dessas dirupções são muitíssimas e profundas, incluindo a fragmentação e dispersão dos antigos conceitos de povo, populismo, espaço público, debate público etc.”. Para ela, “o sensacionalismo mal-informado, retórico e saudosista em nada ajuda a enfrentar os desafios”. Como militante para o avanço do conhecimento ao longo de toda sua trajetória, defende o lema “do bem entender para melhor agir, por mais que isso implique o engajamento na ética do intelecto que custa em tempo, dedicação e muito estudo aquilo que vale contra as farsas intelectuais que procriam no gregarismo autocomplacente".
Consumo e hipervigilância
Adorno afirma que os outros seis artigos do dossiê buscam dialogar com a perspectiva teórica-empírica de Santaella por meio da análise de vários temas. Um deles é a articulação entre a vivência do consumo como experiência de subjetividade e as transformações nos mercados globais nos últimos 40 anos, assunto de “Capitalismo de Dados e Guerras Estéticas”, de Abel Reis e Silvia Piva.
Em “Silenciamento Sociotécnico e os Limites do Poder Instrumental”, Alcides Peron e Anderson Röhe discutem como os recursos eletrônicos possibilitam não apenas a hipervigilância, mas também a classificação de risco e dispositivos preditivos. Eles alertam que esses sistemas, apesar de atuarem na predição do crime e gestão de riscos, possibilitam ao Estado uma forma de poder não violenta focada em moldar comportamentos e decisões dos indivíduos.
No entanto, as tecnologias digitais também possibilitam perspectivas educacionais inovadores. Um exemplo disso é debatido no artigo “Estética, Jogabilidade e Narrativa para o Antropoceno”, no qual Clayton Policarpo, Guilherme Cestari e Luiz Napole estudam dois videogames que, mediante imersão, premissas e cenários críticos propostos, relacionam os impactos ambientais e perspectivas distópicas para o futuro da espécie humana, uma perspectiva em que estão presentes “alguns dos desafios epistemológicos, éticos e identitários do Antropoceno”.
Carro voador
Uma questão de momento é o contexto tecnológico de desenvolvimento do chamado carro voador, cujos modelos já desenvolvidos e futuros tende a ser autônomos, sem piloto. Magaly Prado e Gustavo Galbiatti são os autores de “No Ar: Carro Voador como Máquina Autônoma sem Emissão em Análise de Viabilidade”. Com base em entrevistas com especialistas e na literatura da área, eles analisam questões técnicas, sustentabilidade ambiental e viabilidade econômica do novo veículo.
Adorno comenta que o dossiê também retoma “velhas questões a respeito do impacto da tecnologia digital no contexto brasileiro, focalizando suas virtudes decorrentes da ampliação do compartilhamento e acesso a informações para maior número de cidadãos, mas também seus perigos quanto a possíveis efeitos de dominação”.
O artigo final do dossiê, “O Tecnototalitarismo e os Riscos para a Democracia e para os Sujeitos”, de Eder Van Pelt, trata dos riscos de legitimidade do exercício do poder com o uso das novas tecnologias, em uma possível tecnocracia que faz uso político das tecnologias enquanto instrumentos de controle das atividades dos indivíduos. Ele defenfe a necessidade de pensar em meios efetivos para a integração entre os sistemas especializados em tecnologia e a democracia, que leve a possibilidades concretas de um debate público mais consistente e participativo, especialmente com a inclusão de todos os que estão afetados por esses novos dispositivos de controle.
Literatura
A edição contém ainda dois conjuntos de textos. Um deles é seção "Presenças", uma coleção de "sugestivos e ricos ensaios de crítica literária”, segundo Adorno, além de artigos sobre questões de gênero. Os ensaios sobre literatura têm como temas uma autocrítica de Euclides da Cunha quanto ao significado da revolta de Canudos; precariedade e memória na ficção de Nélida Piñon e Ana Teresa Torres; a edição de um poema inédito de Caldas Barbosa; a decomposição do gênero romance policial em um conto de Machado de Assis; as origens da poesia em língua francesa de Sérgio Milliet; e a cena teatral na Bahia em 1551/1552 produzida por grupo jesuítico ligado ao padre Manuel da Nóbrega.
Participação da mulher
Os sentidos e as transformações psicológicas que acompanham a participação política das mulheres são discutidos a partir da trajetória de vida de uma das participantes da Marcha Mundial das Mulheres (movimento iniciado em 2000), a militante feminista e antirracista Helena Nogueira, morta em 2020 aos 64 anos. A partir de “O Capital”, de Karl Marx, e “Fetichismo – Colonizar o Outro”, de Vladimir Safatle, outro texto discute o “fetichismo do igual, um dos desdobramentos do fetichismo da mercadoria”, a partir das relações entre as personagens do filme “Que Horas Ela Volta”, dirigido por Anna Muylaert. A seção termina com texto sobre a emancipação da mulher e a presença das ciências e da matemática no jornal O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, “revista quinzenal, literária, recreativa, noticiosa e política” publicada na cidade do Rio de Janeiro em 1889 e 1890, por Francisca Senhorinha de Motta Diniz.
Evolução humana
A seção “Evolução, Memória e Discriminação” apresenta três artigos: o primeiro, com participação do paleoantropólogo Walter Neves, professor sênior do IEA, traz uma síntese da evolução humana com especial atenção às questões do Pleistoceno Médio, período quando surgiu o Homo sapiens, os avanços da área e a contribuição brasileira sobre o tema; o segundo analisa criticamente como o legado dos professores da Missão Francesa na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP tornou-se aspecto relevante da memorialística entre os participantes do curso de história. O terceiro tema da seção é a escassez de conservadores no meio acadêmico estadunidense, com uma avaliação da força relativa de quatro hipóteses para isso: meritocracia (menos aptidão acadêmica), discriminação, conversão (o meio induzindo à esquerda) e autosseleção (opção voluntária em não ingressar na academia).
A edição é completada com resenhas de quatro livros: “Arrabalde: Em busca da Amazônia, de João Moreira Salles; “Pacto da Branquitude”, de Cida Bento; “As Margens da Ficção”, de Jacques Rancière; e “Administração de Conflitos e Justiça: As Pequenas Causas em um Juizado nos EUA”, de Ann Arbor.
Os exemplares impressos da edição 110 de Estudos Avançados estarão disponíveis em breve, ao preço de R$ 40,00. Os interessados em comprar/reservar um exemplar ou fazer uma assinatura anual (três edições por R$ 100,00) devem enviar mensagem para estavan@usp.br.
Sumário
Implicações Humanas das Tecnociências
- Diagnóstico do Contemporâneo - Lucia Santaella
- Capitalismo de Dados e Guerras Estéticas - Abel Reis e Silvia Piva
- Silenciamento Sociotécnico e os Limites do Poder Instrumental - Alcides Eduardo dos Reis Peron e Anderson Röhe
- Estética, Jogabilidade e Narrativa para o Antropoceno - Clayton Policarpo, Guilherme Henrique
- de Oliveira Cestari e Luiz Felipe Napole
- No Ar: Carro Voador como Máquina Autônoma sem Emissão em Análise de Viabilidade - Magaly Prado e Gustavo Galbiatti
- Consumo, Cidadania e Vigilância: Reflexões sobre a Expansão Tecnológica e seus Impactos no Contexto Brasileiro - Bruno Pompeu, Eneus Trindade e Silvio Koiti Sato
- O Tecnototalitarismo e os Riscos para a Democracia e para os Sujeitos - Eder Van Pelt
Presenças
- A Loucura das Multidões - Crítica e Autocrítica em Euclides da Cunha - Ulysses Pinheiro
- Ficções do Despojo: Precariedade e Memória na Escrita de Nélida Piñon e Ana Teresa Torres - Jesús Arellano
- Um Inédito de Caldas Barbosa: Introdução, Edição e Comentário - Caio Cesar Esteves de Souza e Leonardo Zuccaro
- Machado de Assis e a Paródia do Romance Policial - Cleber Vinicius do Amaral Felipe
- No Início era Serge: A Poesia em Língua Francesa de Sérgio Milliet - Valter Cesar Pinheiro
- Manuel da Nóbrega e a Performance da Mercadoria - Sérgio de Carvalho
- Tomando a Palavra: Helena Nogueira e o Falar como Conquista Política e Psicológica - Mariana Luciano Afonso
- O Mecanismo do Fetiche do Igual e os seus Desvelamentos no Fime "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert - Camila Franquini Pereira
- A Emancipação da Mulher e a Presença das Ciências e da Matemática no Periódico O Quinze de Novembro do Sexo Feminino - Zaqueu Vieira Oliveira e Victoria Maria Lopes Corrêa
Evolução, Memória e Discriminação
- O Pleistoceno Médio na Evolução Humana - Walter Neves e e Gabriel Rocha
- A Missão Francesa na História (USP): Relato Inaugural e Monumentalização (1949-1971) - Diego José Fernandes Freire
- Quatro Hipóteses para a Escassez Conservadora no Meio Acadêmico Norte-Americano - Pedro Franco
Resenhas
- Novas Palavras na Literatura Amazônica - Jacques Marcovitch
- "Pacto da Branquitude": Racismo Institucional e Desigualdades no Trabalho - Raul Gomes de Almeida
- O Espaço-Tempo da Literatura Contemporânea: Sobre "As Margens da Ficção" de Jacques Rancière - João Arthur Macieira
- Sobre Fairness, Ritos Legais e Barganhas: O Juizado de Pequenas Causas dos Estados Unidos numa Leitura Antropológica - Eduardo C. B. Bittar