Cinema e psicanálise: uma história de convergências e divergências
Luiz Fernando Gallego, psicanalista e crítico de cinema |
Três questões dominaram as discussões do encontro Cinema e Psicanálise, no dia 12 de setembro: numa época pós-freudiana como a atual é possível considerar a psicanálise uma ferramenta para a análise da produção cinematográfica? Teriam a psicanálise e o cinema perdido seu caráter humanista? O humanismo ainda faz sentido como categoria analítica?
Organizado pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria entre o IEA e o Itaú Cultural, o evento teve o psicanalista e crítico de cinema Luiz Fernando Gallego como conferencista.
Gallego baseou a exposição em sua contribuição ao livro recém-lançado "Rouanet: 80 Anos", que reuniu as discussões ocorridas em seminário homônimo realizado em 2014 em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, titular da cátedra.
O encontro no IEA teve como debatedores o antropólogo cultural Massimo Canevacci, ex-professor visitante do IEA, e a psicanalista Alessandra Parente, pós-doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Coube a Rouanet a moderação do debate.
Gallego apresentou as características dos principais movimentos cinematográficos desde o início do século 20 até a Nouvelle Vague francesa, relacionando-os com o quadro histórico em que estavam inseridos e com a produção de Freud e de outros psicanalistas em cada período..
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Freud era resistente à música como forma de arte, pois não podia traduzi-la em palavras, e teve a mesma dificuldade com o cinema, de acordo com o conferencista. “O que Freud mais questionava era a possibilidade de o cinema representar visualmente os mecanismos psíquicos que ele descrevera."
Gallego comentou que a publicação de "Das Unheimlich" [o termo alemão pode ser traduzido por sinistro ou inquietante] por Freud em 1919 coincidiu com o surgimento do cinema expressionista alemão, "cujos cineastas conheciam a obra do austríaco". Em seguida, disse, surgiu o formalismo russo, com "a pretensão de levar o espectador a refletir".
Em 1929, a Bolsa de Nova York quebrou e teve início a Grande Depressão. Surge o surrealismo no cinema com o filme “O Cão Andaluz”, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, "ao passo que nos Estados Unido e na Itália imperava um cinema escapista".
Em 1930, Freud publica “O Mal-Estar da Civilização”, fruto de troca de correspondência com o físico Albert Einstein, de acordo com Gallego. Em 36, os nazistas queimam seus livros e ele parte para a Inglaterra em 1938, morrendo no ano seguinte.
Durante a Segunda Guerra, a psicanálise é marcada por discussões entre linhas teóricas, afirmou o conferencista: “As bombas caindo e os psicanalistas discutindo as diferenças entre as análises de crianças feitas por Anna Freud e Melanie Klein”.
Finda a guerra, surge o neorrealismo no cinema italiano. "Com um estilo quase documental e tratando de questões sociais, esse movimento influenciou muito os cinemas do mundo todo, inclusive o brasileiro.” Gallego disse que Lucino Visconti, um dos cineastas de destaque do neorrealismo, era um profundo conhecedor de Freud.
Os anos 50 marcam o início da perda de audiência do cinema americano para a televisão. Para se diferenciar e ser mais atrativo, o cinema incorpora inovações como o cinemascope, o 3D e novos sistemas de som, mas ainda sofre influência do neorrealismo, afirmou.
Massimo Canevacci, antropólogo cultural |
"Nesse período, em 1953, Lacan cria celeuma ao estabelecer o tempo lógico para as sessões de análise, em oposição às sessões de 40, 50 minutos preconizadas pela Associação Psicanalítica Internacional."
No final dos anos 50 e início dos 60, desenvolve-se a Nouvelle Vague, o último grande movimento cinematográfico, na opinião de Gallego.
“Já é um cinema autorreferente, já pensa o cinema. Há um culto a alguns cineastas americanos por parte de alguns críticos de cinema que depois se tornam diretores. A Nouvelle Vague possui uma estética de fragmentação, com filmes sem roteiro e não-lineares. Era como se o cinema tivesse percorrido várias escolas literárias e pictóricas desde o início do século 20."
No mesmo período, o freudismo está se fragmentando em várias teorias e escolas e “mais que um pluralismo, o que se vê é uma escolástica, com os integrantes de cada escola franzindo o nariz para as outras".
No entanto, é nesse quadro de crise do cinema americano (em função da televisão) e de fragmentação da psicanálise que "vai surgir a grande cinematografia autoral, com Bergman, Fellini, Kurosawa, Resnnais, Truffaut e outros". Gallego chama esse cinema de humanista, "no sentido renascentista do termo: ‘o homem como medida de todas as coisas’, o homem e suas angústias, o homem e sua vida psíquica, o homem e as questões sociais”.
Para ele, esse humanismo está em crise no cinema por várias razões: a mudança de suporte (primeiro para fita de vídeo, depois para o DVD, em seguida para o pendrive e agora a armazenagem na núvem), com a possibilidade de fruição individual do filme; predominância de efeitos especiais; e infantilização do público e da crítica.
Na psicanálise, ele vê a perda do humanismo na sua crise interna e na mudança da dinâmica das sessões de análise: em oposição ao tempo lógico defendido por Lacan, há a implantação de uma rotina burocrática, com sessões curtas e semanais.
Comentários
No debate que se seguiu à conferência, Massimo Canevacci apontou que o cinema surgiu já no ambiente de “fragilidade do Iluminismo” mencionada por Rouanet e citada por Gallego. “Até mesmo antes, no período da expansão da fotografia, isso já passara a ocorrer e teve a ver com atuação da ocultista russa Helena Blavatiski, que influenciou a expansão europeia do espiritismo, que, por sua vez, influenciou muitas coisas, inclusive o fascismo e o nazismo."
Em relação à infantilização do público e da crítica mencionada por Gallego, Canevacci disse que isso é uma constante no cinema, mas que a palavra mais adequada é puerilização: “Ser pueril significa ter uma visão regressiva, enquanto a infantilização pode ter algo de progressista: deslumbramento com o novo e imaginação de um mundo feliz”.
Sobre a aproximação entre surrealismo e psicanálise, o antropólogo afirmou que quando os pintores surrealistas procuraram Freud este disse que não tinha nenhum interesse no id (responsável pelos desejos instintivos), sobre o qual eles elaboravam, e que tudo para ele era baseado na consciência.
Para Canevacci, “a máquina do cinema (roteiro, filmagem, montagem, edição etc.) não pode liberar o inconsciente, mas sim tentar, como a consciência, representar uma dimensão psicológica totalmente baseada no ego”.
Alessandra Parente, psicanalista |
Ele discorda que se possa interpretar psicanaliticamente um filme a posteriore. “Uma pessoa, com a metodologia que possui, seleciona coisas que correspondam à sua hipótese: não dá para pegar um filme do passado e interpretá-lo com base no presente. Isso é uma projeção que não funciona.”
Sobre as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias, como o acesso a filmes e fragmentos deles na nuvem e em várias redes sociais, Canevacci disse que antes tinha muita esperança na cultura digital, "mas ela se tornou um problema sério, que precisa ser enfrentado de maneira inovadora".
Devido às mudanças na comunicaçãograças à cultura digital, ele julga que talvez seja preciso uma nova metodologia para tratar das relações entre cinema e psicanálise.
Um dos temas comentados por Alessandra Parente foi a reserva de Freud em relação ao cinema: "Aconteceram muitas coisas interessantes contemporâneas de Freud que ele simplesmente ignorou, como o cinema e vários movimentos vanguardistas, pois ele era bastante convencional em termos de arte".
“Freud tinha uma resistência em relação ao olhar. A psicanálise toda interdita o olhar. O exemplo mais corriqueiro é o paciente no divã, para que não haja espaço para a imagem, mas sim para a fala.”
Alessandra supõe que a técnica cinematográfica talvez não fosse tão atraente a Freud por fazer com que as imagens surjam de forma mágica, impedindo que as mediações sejam explicitadas: “E pensamento sem mediação é pensamento onipotente, pensamento mágico, em suma, pensamento que obedece à lógica infantil”.
No caso da objeção de Freud ao surrealismo, Alessandra acredita que a razão esteja no perfil iluminista clássico de Freud. "André Breton tentou conversar com ele, mas não conseguiu. Breton acreditava num processo discursivo e não sublimatório. E Freud sempre apostou na sublimação como saída."
Assim como Canevacci, Alessandra não concorda que o humanismo seja uma categoria válida atualmente para pensar sobre filmes do passado. Segundo ela, tem havido um debate filosófico sobre a pertinência desse categoria: “Depois de tudo que a gente já viu que os homens são capazes de fazer, será que não há um lugar inumano que seja, paradoxalmente, mais humano do que colocar o homem no centro.”
Canevacci acrescentou que "o problema com o humanismo é que ele é antropocêntrico" e que é preciso desenvolver algo em que "o vegetal, o animal, o inorgânico e o sagrado estejam misturados com a dimensão do humanismo".
Fotos: Leonor Calazans/IEA-USP